Nos dias que correm, só mesmo gente com défice de atenção ou superavit de ruindade consegue achar o primeiro presidente laranja dos EUA, Donald Trump, uma figura recomendável. Recentemente, o homem esteve em Kansas City num comício diante de veteranos de guerra e, a dada altura, quando se entretinha a vilificar a comunicação social, disse ao seu auditório que “aquilo que estão a ver e estão a ler não é o que se está a acontecer”.

Nos dias seguintes, quase não houve ninguém que não comparasse o momento com a cena de 1984, em que o protagonista se recorda de que “o partido” lhe disse que “tinha de rejeitar a evidência dos seus olhos e ouvidos”, e que este era “o seu derradeiro, e mais essencial, comando”. No que diz respeito aos fãs de Trump, o “comando” parece estar a ser obedientemente seguido: uma sondagem da CBS indicava que 93% dos apoiantes “fortes” do presidente americano confiam nele como “fonte de informação” fidedigna, enquanto só 11% dizem o mesmo da comunicação social.

Este tipo de retórica de negação da verdade, vinda de Trump ou de qualquer outro, e a sua aceitação por parte de uma significativa porção dos eleitorados, deveria aterrorizar todas as pessoas possuidoras de um mínimo de bom senso, porque é um ataque ao coração de uma democracia que, não a matando (substituindo-a por um regime abertamente autoritário) a poderá transformar numa versão “zombie” de si mesma (mantendo as suas formas exteriores, como a realização de eleições, mas mascarando a sua completa manipulação e a natureza autoritária do exercício do poder, como acontece, por exemplo, na Rússia de Putin).

Quando Trump diz que as pessoas não devem ter em conta o que vêem, pretende, em primeiro lugar, fazer com que elas acreditem na sua “verdade ilusória”, convencendo os fiéis (que por o serem até já estão predispostos a ser convencidos) a ignorar os factos que abalem a sua percepção das coisas.

No caso concreto, pretende fazê-los rejeitar as inegáveis evidências de práticas ilegais de financiamento de campanha, de abuso de poder, ligações obscuras à Rússia e aos seus “oligarcas” (em português, mafiosos) ou de pura e simples crueldade. No entanto, essa retórica tem outros objectivos e efeitos que, embora “secundários”, não são menos perniciosos.

Ao promover a ideia de que a realidade não é real, de que os factos de que a comunicação social ou a oposição falam não são verdadeiros, Trump gera um clima de desconfiança e cinismo em relação à actividade política que convidam à apatia eleitoral. Num ambiente político em que a apatia reine, a participação (e o voto) fica mais limitada aos mais militantes.

Ou seja, ao comportar-se como um político que confirma na generalidade das pessoas a pior ideia que elas têm dos políticos, Trump contribui para excluir dela aqueles que estão menos predispostos a mudar de opinião consoante os factos diante de si, e garante que o peso dos votos daqueles que votariam nele independentemente do que fizer acabem por ter mais peso dada a maior abstenção dos outros.

Resta ainda que a ideia de que “o que se vê” e “e o que está a acontecer” não são a mesma coisa alimenta o carácter de “teórico da conspiração” que sempre esteve no coração da persona política de Trump. Ao dizer que todo e qualquer facto que mostre a sua verdadeira natureza de político corrupto e comprometido não passa de um produto de uma cabala da comunicação social e do sistema judicial, Trump cria nos seus fiéis a ideia de que vivem num mundo dominado por forças remotas e obscuras contra as quais nada podem, o que por sua vez lhes cria o anseio por um “homem forte” que seja capaz de as enfrentar e “devolver” o “poder” ao “povo”.

Imagino que os leitores mais enamorados de Trump estejam por esta altura inquietos, e a preparar-se para escrever um comentário perguntando-me por que razão escrevo sobre Trump em vez do que se passa cá em Portugal. “É lá na América, o que é nos interessa?”, dirão.

Interessa-nos, por causa do impacto da América no mundo, incluindo cá: uns EUA menos democráticos estarão menos interessados na defesa da democracia, deixando a “Europa” e Portugal mais desprotegidos e à mercê dos que lá fora e cá dentro a querem destruir. E interessa-nos, porque as mesmas artimanhas poderão ser usadas cá.

Aliás, já estão a ser: o sexto parágrafo deste texto repete o argumento de um artigo que aqui escrevi sobre a surrealidade do debate político em Portugal, e claro, até já tivemos José Sócrates, o que de mais parecido com Trump houve por cá.

A verdade, por muito que alguns não queiram aceitar, é que o que vemos está mesmo a acontecer, e dificilmente poderia ser mais assustador.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.