“America is back” foi a frase usada, há meses, por Joe Biden, para assinalar ao mundo, em especial aos seus aliados, que o interregno traumático de Trump estava encerrado e que os EUA reassumiam, com convicção, o seu papel de potência com ambição de liderança democrática global, com retoma de atenção aos seus parceiros e ao mundo multilateral.

A mensagem era também para os adversários, em especial para a China e Rússia, que, com ela, eram alertados para a nova determinação de Washington em estruturar uma agenda assertiva de interesses com que tinham que contar.

“America is back”, contava poder dizer, dentro de dias, com serenidade, Joe Biden, mas, agora na volta do Afeganistão, onde, nos últimos 20 anos, os EUA haviam empenhado tropas, vidas e muitos recursos.

Tudo começou como uma ação legítima, para a qual foram arregimentados mais de 40 países, no pós 11 de setembro de 2001, com o objetivo de erradicar o terrorismo do Al Qaeda. Depois, para que essa ação tivesse um efeito consistente a prazo, os EUA haviam desenhado um projeto de “State-building”, destinado a travar o integrismo islâmico e construir instituições sustentáveis para um Afeganistão democrático.

Todo esse esforço ruiu, como sabemos, em escassos dias, de uma forma clamorosa.

Vão por aí fervilhar análises sobre as lições a aprender com este falhanço, que se soma ao saldo desastroso da intervenção no Iraque, dois anos depois do Afeganistão, dessa vez numa operação sem a menor legitimidade, que viria a ter como saldo uma trágica desregulação securitária do Médio Oriente, dando origem ao Daesh, contribuindo para a tragédia na Síria.

Neste rescaldo da humilhação, que é americana mas também dos aliados, que ficou simbolizada, no passado domingo, com a queda mansa de Cabul e do governo que se percebeu que só fazia de conta que existia, vale a pena dizer duas coisas, imagino que pouco populares.

A primeira é que foi justa e correta a decisão de ir para o Afeganistão em 2001, procurando liquidar a Al Qaeda e, de caminho, derrubar o poder talibã que o protegia. É importante nunca esquecer as imagens das Torres Gémeas a cair. A luta contra o terrorismo islâmico não era uma guerra americana, era e é também a nossa guerra.

A segunda é que, mesmo que constatemos ter sido um fracasso a sua sustentação, a sociedade que foi tentando criar, ao longo destas duas décadas, no Afeganistão, era um projeto decente e meritório. Muitos afegãos viveram, por bastantes anos, na liberdade que a guerra permitiu, houve uma inteira geração que gozou de democracia, as mulheres recuperaram os seus direitos, havia liberdade dos média, a educação foi expandida e o país usufruiu de fortes investimentos em infraestruturas, que o conflito interno esteve longe de destruir.

As coisas são hoje o que são, estando nós ainda longe de saber o que virão a ser no futuro. Mas o evidente colapso do esforço feito no Afeganistão não nos deve afastar da ideia, talvez mesmo potenciada pelo choque das imagens que dali agora nos chegam, de que, com todos os erros cometidos, havia uma intenção justa na intervenção que foi tentada.

Os piores dias da administração sob tutela americana irão ser vistos como um sonho bom se comparados com o pesadelo da sociedade talibã que aí vem.