De acordo com informações recentemente vindas a público, a China estará prestes a lançar uma versão digital da sua moeda, o yuan, com o objetivo de quebrar a hegemonia do dólar norte-americano no sistema financeiro global e ganhar um maior controlo sobre a forma como as pessoas gastam o seu dinheiro.

A China prepara-se, assim, para se tornar na primeira e mais poderosa economia a deter uma moeda digital nacional, antecipando a versão digital do euro que o Banco Central Europeu (BCE) está a ponderar lançar. Entre as vantagens apresentadas pela China da versão digital da sua moeda estaria a acessibilidade a serviços bancários, a segurança e a conveniência.

Colocadas nesta perspetiva, as vantagens de uma moeda digital são evidentes, qualquer que seja o país e sistema. No entanto, no caso da China, ou de outros sistemas políticos com as mesmas características, os objetivos podem ser outros.

Com a utilização massiva dos pagamentos eletrónicos e o crescente poder das empresas privadas no processamento de milhares de milhões de pagamentos diariamente e a perda de informação e logo de controlo do Estado sobre os pagamentos (veja-se a investigação anti-monopólio lançada ao grupo Alibaba, que detém a wallet Alipay), um yuan digital daria a Pequim uma quantidade sem precedentes de dados sobre como e onde estão os consumidores a gastar o seu dinheiro.

Na verdade, para além do yuan digital constituir uma forma de fortalecer a vigilância e o controlo do Estado sobre a economia e as pessoas, sendo um meio para aumentar a centralização da autoridade, é, também, num ambiente de conflito comercial com os Estados Unidos, uma arma numa guerra global pelo controlo do comércio internacional: a intenção de substituir o dólar americano como a moeda de referência (o dólar americano representou 88% (1) do volume de transações diárias em 2019, de acordo com dados do Bank for International Settlements).

Tudo isto acontece num momento em que a China e a União Europeia estão à beira de um acordo histórico, com a abertura do espaço económico chinês a um maior investimento da União Europeia. Este acordo de investimento será uma forma de reduzir a dependência dos Estados Unidos e é apenas possível após a decisão do presidente cessante, Donald Trump, de retirar os Estados Unidos da Organização Mundial do Comércio.

Entretanto, na Europa, o BCE publicou no início de outubro de 2020, um relatório no qual analisa a eventual emissão de um euro digital – moeda digital de banco central – na perspetiva do Eurosistema. Posicionado como um complemento ao numerário, um euro digital seria entendido como dinheiro, ou seja, moeda do banco central disponibilizada em formato digital para utilização por consumidores e empresas nos pagamentos de retalho.

Para além do já referido complemento ao numerário, os objetivos passam também pela criação de sinergias com o setor dos pagamentos que ganhou uma relevância enorme após a introdução da revista Diretiva dos Serviços de Pagamento (PSD2), apoiando a digitalização da economia europeia e a garantia de acesso a moeda do banco central, criando uma barreira à utilização de outros ativos não regulados (as criptomoedas), e visando também evitar a utilização de moedas digitais estrangeiras, numa perspetiva de proteção da zona euro.

Neste mesmo relatório são aprofundadas as considerações jurídicas e a abordagem organizacional e técnica à eventual introdução do euro digital, num contexto de salvaguarda e proteção de dados e de segurança da infraestrutura e da utilização. O documento está neste momento em consulta pelos Estados-membros, procurando garantir a convergência dos futuros utilizadores e intermediários, no sentido de avaliar a necessidade, viabilidade e justificações económicas efetivas de um euro digital, num processo que promove o envolvimento de todos e procura o necessário consenso.

Uma decisão quanto ao início do projeto do euro digital poderá ser tomada em meados de 2021, depois de recolhidos e analisados os contributos dos países da zona euro.

Ainda na Europa, a Suécia, membro da UE mas ainda fora da zona euro (comprometeu-se a adotar o euro assim que preencha as condições necessárias para o fazer) anunciou recentemente que abandonará o dinheiro físico em 2023, tornando-se a primeira sociedade a funcionar sem numerário. Em paralelo, o Banco Central da Suécia tem vindo a testar a sua própria moeda digital: a e-Coroa (e-Krona no nome original), num processo iniciado em 2019 e que se prevê implementar durante o ano de 2021.

O dinheiro físico, que permitiu ao longo dos séculos financiar guerras, comprar armas e até regimes, está ele próprio a tornar-se uma arma na sua versão digital. No sentido literal da palavra, para ser usado numa guerra comercial e económica, como meio de ataque ou como forma de proteção e de dissuasão.

(1) Numa escala de 200% tendo em conta que existem sempre dois países envolvidos em cada transação.