[weglot_switcher]

A banca de jornais que ‘virou’ galeria

Dois jovens do Recife trocaram os seus empregos no Brasil por uma nova vida em Lisboa. Podemos encontrá-los numa antiga banca de jornais, hoje montra de arte, que também faz serviço público.
  • Nova Banca Galeria
24 Maio 2021, 07h05

O mundo mudou e a economia tem altos e baixos são truísmos que fariam cócegas ao Sr. de La Palisse. Mas são ambos verdade, tal como é verdade que a pandemia de Covid-19 levou a que alguns hábitos de consumo transitassem do mundo físico para o mundo digital.

Deslizar o dedo pelo ecrã do telemóvel para fazer compras, por exemplo, passou a ser mais recorrente e cómodo. À máxima “eu quero, posso e mando” agora é só acrescentar enter. E pagar a conta, claro. Mas depois do confinamento “covidesco”, até mesmo os mais recatados, indefetíveis do sofá e plataformas digitais, arrebatados por aquilo a que já chamam – no mundo de língua inglesa – de “revenge spending”, começam a olhar para a rua em busca de estímulos.

Entre os estudiosos desse fenómeno, o tal “consumo por vingança”, há quem defenda que o consumo pode ir além do mero arrebatamento, do impulso momentâneo e ter um propósito. Que a pandemia pode ter aberto caminho a um consumo mais consciente. Estaremos atentos. Até porque muitas destas tendências ocorrem nos espaços urbanos, efervescentes por excelência.

Foi assim, aliás, que a Nova Banca Galeria, o quiosque de jornais e revistas que ‘virou’ galeria, chamou a nossa atenção, em Lisboa, ao virar da esquina da Av. João XXI com a Av. de Roma. Porque o olhar devora tudo o que não pôde ver durante o confinamento.

Breve conversa com Marina Borba e Manuel Mendonça, o casal oriundo de Recife, no nordeste do Brasil, que dá corpo e alma a este espaço. E para quem os consumidores, em muitos casos, querem algo mais do que simplesmente comprar. No caso dos clientes da Nova Banca, há inclusive quem queira ajudar “este ou aquele artista” porque gosta do seu trabalho.

Como surgiu o projeto da Nova Banca Galeria e quando abriram?

Partiu da sugestão de uma amiga, que tem uma banca especializada em publicações de arte e design, no bairro de Alvalade, e que disse há muitos equipamentos desses disponíveis na cidade. Como o meu marido já vendia arte em feiras, pensámos num projeto e apresentámos à Câmara [Municipal de Lisboa], que achou a proposta muito inusitada mas aceitou testar o conceito. Depois concedeu a licença e propôs este espaço, na Av. de Roma. E foi assim que esta banca de jornais e revistas ‘virou’ galeria, em março de 2020!

Existe mais algum projeto semelhante?

Em princípio é a primeira em Portugal inteiro, mas em Lisboa é de certeza a primeira galeria neste ‘formato’. Daí o nome e definição: “Primeira galeria de arte no passeio de Lisboa – Arte e Design”.

Qual é o principal objetivo da Nova Banca?

O objetivo maior da nova banca é oferecer arte acessível – financeira e visualmente. O facto de estarmos na rua, no passeio, no meio das pessoas, elimina aquele receio do “não vou entrar porque não tenho dinheiro para comprar e vou ficar constrangido”. Assim, as pessoas passam, olham de longe, nós ficamos aqui atrás [do balcão] e tentamos não invadir a pessoa que quer olhar, mas também não deixar ela na mão – oferecemos ajuda.

Qual é a vossa formação? E desde quando estão em Portugal?

A minha formação é em design e a do meu marido em publicidade. Viemos para Portugal há cinco anos, porque eu decidi fazer cá o doutoramento em Belas-Artes, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, e ele veio me acompanhar. Ele é copywriter, mas foi cá que se descobriu mais artista. Começou a fazer cursos de pintura e desenho e começou a desenvolver algumas ‘habilidades’, e foi fazendo o seu caminho sozinho.

Como freelancer?

Pegou na sua mochilinha e nos seus trabalhos e foi falando com galerias, primeiro a Note, depois a Malapata… mas também começámos a pensar como seria bom ter um espaço nosso para mostrar os seus trabalhos e também os dos nossos colegas. Como ele fazia feiras, conhecia muita gente que tinha bons trabalhos e que não tem  oportunidade para mostrar o que faz nas galerias. Aí, em conversa com essa amiga, surgiu a ideia de o quiosque poder ‘virar’ uma galeria.

Começaram com quantos artistas? E quantas nacionalidades estão aqui representadas?

Começámos com seis artistas, contando com o Manuel, e temos oito nacionalidades: Portugal, Brasil, França, Gana, Peru, Estados Unidos, Itália e Irlanda. Hoje já temos 49 artistas aqui na Nova Banca. E funciona à consignação, ficamos com uma percentagem muito pequena comparado com o que se pratica lá fora.

Quais são os critérios para integrar o portefólio da Nova Banca?

É difícil dar um ‘não’, mas a linha visual é o que predomina. Como as pessoas passam rápido, a expressão não pode ser muito conceptual. O cliente, consumidor, tem uma interação rápida, logo tem de apreender rápido. Por isso a linha é um pouco similar. Evitamos ter muitas cores fortes, vibrantes, porque daria confusão. Tem de ser mais clean para podermos acomodar toda essa quantidade de peças. Aí fazemos a curadoria com base nessa seleção, os artistas já sabem que os valores que praticamos aqui são acessíveis – entre os 20€ e os 50, 60€. Além do valor e da dimensão [pequena], a gente também prioriza o original. E se não for um trabalho original, então tem de ser um print assinado e, de preferência, com limitação de produção. Ou print assinado, e parou aí. Esse é o nosso filtro de gradação.

Com o fim do confinamento começou a falar-se em “spending revenge”. Vocês têm sentido isso? As pessoas estão mais ávidas de comprar?

A Nova Banca esteve fechada de 15 de janeiro a 5 de abril, e quando reabrimos notámos que havia mais gente. E o perfil do nosso consumidor, vamos dizer, é 80% feminino e a faixa etária é muito transversal. Mas o mais importante e que temos notado é que muita gente que não tem essa prática de consumir arte, está a consumir. Muita gente vem cá e quer comprar este ou aquele trabalho porque quer ajudar o artista. Pergunta pela história, pelo processo criativo… Há vontade de saber mais!

Houve contactos com a Junta de Freguesia do Areeiro?

Nós não, mas o mais interessante é que há um mês atrás a Junta entrou em contacto connosco e estamos agora a começar a desenvolver alguns projetos culturais com eles. Já temos propostas aprovadas e o responsável pela área da cultura quer que a gente expanda para um segundo espaço e contribua para a divulgação da arte local, mas ainda não podemos divulgar porque os projetos estão ganhando forma. Mas haverá novidades em breve.

Como é a relação de vizinhança? Estão integrados no bairro? 

Os vizinhos do Areeiro são muito importantes porque estimulam esse movimento cultural na rua. Apoiam muito os pequenos negócios locais. A aceitação está a ser muito positiva e também sentimos que oferecemos serviço público. Tem a conversa do dia a dia. As pessoas gostam de ficar aqui a conversar sobre a família, a doença, a viagem, o tempo… E ainda fornecemos informação: temos o Google maps para dar direção, serviço de internet, trocamos dinheiro, damos envelopes. Acho interessante esse convívio na rua, pois no Brasil não é muito comum.

Já conheciam Portugal, ou Lisboa pelo menos? A adaptação foi fácil?

Já tínhamos estado cá várias vezes, mas fácil não foi. É sempre uma grande mudança ficar longe da família, dos amigos. A gente tinha bons empregos lá e desistiu, arriscou tudo para vir para cá.

E está a valer a pena?

É uma experiência incomparável, riquíssima! Estava lendo um livro que diz: às vezes você tem que buscar um lugar, mesmo que geograficamente falando, que você sinta que comunique com a sua essência. E a gente sente isso aqui. Lisboa comunica com a nossa essência, em relação a essa dinâmica da rua, das pessoas. Por mais que a gente pense que no Brasil todo o mundo é muito simpático, nem todo o mundo é tão solícito, próximo.

É uma realidade muito distinta…

É, a nossa realidade no Brasil é muito diferente. São várias realidades. Se falarmos na classe média no Brasil, a cultura não é uma coisa muito querida. Não é como aqui, em que se consome cultura, se vai ao cinema, se lê, se vai ao teatro, a sítios históricos, se consome artes gráficas. Por isso, apesar da dificuldade de adaptação, a realidade para nós aqui faz mais sentido, nos sentimos bem!

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.