A propósito do caso judicial mais mediático do momento – o do Vieira e não o do Berardo – decidi escrever um artigo na dupla qualidade de ex-empresário e de advogado de empresas. Vou cingir-me apenas a uma situação que, por dever de ofício, conheço bem: a venda de créditos em situação de incumprimento por parte dos bancos e a situação dos avalistas nessa situação.

Os bancos tradicionalmente, na análise de crédito, solicitam às sociedades de responsabilidade limitada (sociedades anónimas e por quotas) avales dos seus sócios. Desta forma, desfuncionaliza-se, na prática, o instituto da responsabilidade limitada, mediante o qual apenas o património social responde pelas dívidas da sociedade e, assim, os credores desta não se podem fazer pagar pelas forças do património dos sócios. Por outro lado, os credores dos sócios não se podem fazer pagar pelo património da sociedade, protegendo, portanto, os bancos credores da sociedade, mas apenas pelas participações sociais dos sócios avalistas.

Claro que as sociedades cotadas, os fundos de capital de risco ou de private equity, os project finance puros e empresas de grande sucesso estão imunes a esta exigência da banca. Deve ser um corolário daquele princípio de que a banca só empresta a quem não precisa…

Dando de barato que aquela exigência dos avales faz sentido – mormente nos casos de empresas que não demonstrem ter cash-flows futuros que permitam uma visibilidade sobre o cumprimento integral e pontual das obrigações para com o banco – vejamos as alternativas que se colocam aos avalistas, normalmente os empresários, que assim colocam o seu património pessoal a correr todos os riscos da empresa paradoxalmente de responsabilidade limitada.

Uma alternativa é a de se apresentarem à insolvência conjuntamente com a empresa devedora principal, já que as medidas de revitalização judicial eventualmente aprovadas para a empresa não são extensíveis aos avalistas. Assim pode dar-se o caso de serem perdoadas, total ou parcialmente as dívidas à empresa, mas os avalistas terão de pagar a totalidade da dívida perdoada.

Outra alternativa, é a de tentarem uma renegociação da dívida (redução da dívida, extensão dos prazos de amortização, redução das taxas de juro, dação em pagamento de bens, incluindo a própria empresa ou os seus activos), cuja resposta da banca é normalmente a de executarem acriticamente o património dos avalistas.

E por fim, quando a banca, por exigência do supervisor, se desfaz das non performing exposures, para libertar capital, mediante processos de venda a terceiros, estes adquirentes ou iniciam um processo de execução ou tentam renegociar com os devedores cedidos um modo de pagamento que permita a esses compradores do crédito uma mais-valia – diferença para mais do valor pelo qual adquiriram o crédito.

É este último caso que quero tratar aqui, com o caso do Vieira à mistura. Se for o devedor a ir ao Novo Banco renegociar a dívida isso está-lhe vedado, ainda que demonstre que o seu património é inferior ao valor da dívida. É o chamado moral hazard.

Mas o que fez o Novo Banco – e aliás, como fizeram quase todos os bancos da nossa praça, muitas das vezes sem conhecimento prévio dos devedores cedidos, violando a fidúcia que sempre deve existir entre o banco e os seus clientes, ainda que incumpridores – foi ceder um portfolio de NPL a um investidor profissional, no âmbito de um processo de venda competitivo, maximizando o valor de venda.

O Novo Banco vendeu o que quis e quis o que vendeu. E com o anacrónico mecanismo de capital contingente até tinha um incentivo a essa venda fosse por que preço fosse… Ora, perante esta situação, o que pode fazer o avalista que é dono de uma empresa devedora com algum valor económico?

Pode, se tiver fundos, pagar a dívida ao tal investidor. Ou pode ainda solicitar a um terceiro que compre o crédito a esse investidor e prometa dar em pagamento a empresa e consequentemente os seus activos subjacentes, obtendo, como contrapartida, apenas a libertação dos avales prestados. Nada mais simples, justo e transparente.

Aparentemente foi isto que foi feito entre o Vieira devedor, a Davison Kempner, que comprou o crédito ao Novo Banco dentro de um portfolio, e o Senhor Santos, que comprou a esta o crédito e o trocou por uma empresa e os seu activos. E se foi isto e só isto, concordo com o advogado de Vieira. Isto não é crime!

Preocupam-me, assim, os apressados juízos de valor (ou de desvalor) sobre o mundo dos negócios e das empresas, normalmente impregnados de uma ignorância (sem culpa, muitas das vezes) sobre como se gere uma empresa e se lidam com os negócios.

Ser empresário é um risco. A empresa é uma aventura e se visa o lucro é também possível que gere o prejuízo. Quem não perceba esta verdade meridiana é melhor que se dedique à causa pública ou arranje um emprego na função pública. Mas depois não critique quem arriscou!

E hoje é um risco tremendo, porque o Ministério Público e os Juízes nunca trabalharam numa empresa, desconhecem o mundo dos negócios, dos contratos, das facturas, dos ordenados dos trabalhadores, das vendas, das cobranças, das dívidas aos fornecedores, da contabilidade, dos impostos e da sua burocracia e complexidade brutais.

Cuidado com o follow the money e as detenções de pessoas com base nessa técnica de investigação, alvorada em rainha das provas, sem que se tente perceber qual a realidade subjacente!

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.