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A emoção no futebol e a coragem na vida do “vendedor de sonhos”

Luís Freitas Lobo vive no Porto e, como nos explica ao telefone, viveu toda a sua infância no norte do país. Em Lisboa, há um sítio pelo qual tem um carinho especial. “Já não vou lá… nem sei há quanto tempo… há mais de 20 anos….”, conta-nos, ainda por telefone, enquanto organizamos a ida ao Jardim Zoológico.
  • Nuno Canhoto
16 Abril 2017, 12h00

Aguardamos junto do parque de estacionamento por Laura Dourado, do departamento de comunicação do Jardim Zoológico. Luís Freitas Lobo chegara alguns minutos mais cedo do que a hora marcada e a nossa prevenção para tal cenário permite-nos estar um pouco à conversa antes de a visita começar. “Nunca sei bem onde vou estar”, explica Freitas Lobo, com a imprevisibilidade da grelha de programação Sporttv, canal onde comenta jogos e a atualidade desportiva, em mente.

Residente em Mindelo, Vila do Conde, à quarta-feira é quase sempre certo que vem a Lisboa, para o seu espaço de comentário no canal desportivo. Entretanto, a boleia chega e interrompemos uma conversa que só recuperamos mais de uma hora depois. Sentamo-nos no buggy-estilo- carrinho-de-golfe e poucos metros depois já estamos a começar mal: “Que sítio terrível…” O comentário é feito por Luís Freitas Lobo quando a primeira coisa que vemos é o cemitério do Zoo.

Em casa, a família de Luís Freitas Lobo vive com cinco cadelas. Teve de pensar um pouco antes de responder o número exato, porque “vão entrando e vão saindo, morrem alguns”, explica. “Tenho quatro cadelas e um cão com 17 anos”. São todos apanhados na rua. A única, uma cadela, que comprara já morreu. Chamava-se Débora. Resgatar os animais da rua tem menos de altruísta do que se possa pensar, conta-nos.

“Até pode parecer um pouco egoísta, mas o que eles me dão é muito mais do que lhes dou. Os cães ensinam-nos como devemos ser – a sensação de amizade, sinceridade, entrega incondicional, de reconhecimento… não se encontra em mais lado nenhum; é uma dedicação que não se encontra em nenhuma pessoa”, explica Luís, para concretizar com a definição perfeita, cuja autoria desconhece: “Os meus cães tratam-me como se eu fosse um membro dos Beatles sempre que chego a casa… posso ter saído só por 10 minutos, mas a reação é sempre a mesma”, conta, com um sorriso, ao Jornal Económico.

Saímos do buggy e subimos junto à instalação dos ocapis. O animal é praticamente desconhecido, mas aquela passagem foi sugerida por Freitas Lobo, que perguntou à filha ao pé de que animal deveria tirar uma fotografia. Esta simplesmente lhe disse “Ocapi”, como se o pai e toda a gente devesse conhecer. “Fui procurar no Google e pensei logo ‘epá, este animal não existe… isto é uma montagem de uma zebra com uma girafa’”. Mas existia mesmo, num sítio recôndito do Zoo, “porque são animais muito pouco sociáveis”, explica Laura.

Depois de algum tempo a tentar tirar as medidas ao solitário e envergonhado ocapi, passamos pelos pandas vermelhos. Freitas Lobo está intrigado. Possivelmente mais do que quando tenta descortinar se uma equipa está a jogar em 4x3x3 ou 4x2x3x1. As semelhanças entre hábitos de alimentação levam a conversa até aos coalas. “Eles dormem 18 a 19 horas por dia, não é?”, pergunta Luís a quem nos guia pelo parque, com a segurança de quem sabe a resposta. Depois de ouvir a confirmação, vira-se para nós e, entre a brincadeira e orgulho, comenta “isto não é só [saber] o plantel da Fiorentina”.

A conversa sobre as instalações e os respetivos animais chega muitas vezes às necessidades de preservação das espécies. A extinção, quase sempre por ação do homem, leva Freitas Lobo a diagnosticar “uma falta de noção” de onde vivemos. “Nem noção temporal temos – não há antes nem depois; nem mesmo sobre o próprio planeta e, portanto, a partir daí não se vai ter respeito por ele. Eu não perco nunca essa noção – se vir um caracol no chão, pego nele e meto-o no muro”.

Luís, que vive junto do mar, costuma ter a companhia destes vagarosos molúsculos. Quando os filhos eram mais novos, ensinava aos seus “miúdos” que se devia ter respeito pelos animais, como os caracóis, por exemplo. Como? “Sempre que pegava num chamava-lhe Joca – claro que não era sempre o mesmo, mas eles eram pequenos e eu dizia que era. Para lhes mostrar que era como nós, que era um ser vivo, meti-o no tablier do carro e ele foi connosco até à praia – isto é mesmo verdade! Os meus filhos devem ter achado que eu estava louco da cabeça, a chamar Joca ao caracol…, mas foi para lhes mostrar que temos de fazer bem aos animais”, conta.

Seguimos para as suricatas: “Parecem maiores nas imagens”, uma perceção talvez inflacionada pelos desenhos animados, deduz Freitas Lobo. Na instalação estão umas quantas, cinco ou seis, irrequietas, a lutar por larvas que os tratadores esconderam de propósito de modo a encenar as dificuldades na vida real. A educação que Luís dá aos filhos, com os animais como exemplo, é também um ensaio para lidar com pessoas, mas o comentador desportivo sublinha um senão: “Se tratarmos sempre bem um animal, ele vai tratar-nos sempre bem para a vida; com uma pessoa já não é bem assim.”

Porque nos podem surpreender pela negativa? “Constantemente… quer dizer… a mim já não me surpreendem. Acho que as pessoas têm muito a aprender com os animais, a nível de relacionamento, de valores – eu não gosto as generalizações, mas acho que com um animal há uma entrega e reciprocidade que permite seres tu próprio a vida toda”, frisa Freitas Lobo, marcado pela experiência de quem trabalha em dois mundos muito competitivos.

O futebol e os media fazem com que se evidenciem mais os defeitos nas relações pessoais e laborais – esse é um dado adquirido, concorda. “Para vingar é, então, preciso desenvolver uma capacidade de abstração, de me auto proteger – eu não me posso expor”, diz. “Sendo, essencialmente, emocional, tenho muita dificuldade em lidar com isso, portanto há situações em que se tem de recorrer à abstração e até ao isolamento; há que criar um mundo próprio…”, sugere, enquanto sobre nós ecoa um chilrear incessante.

“Há quem diga que a última coisa a morrer é a esperança, para mim a última coisa a morrer é a coragem”, afirma resignadamente Luís Freitas Lobo. “Já perdi a esperança em encontrar diferenças [pela positiva] no relacionamento humano, seja na atividade profissional ou pessoal – claro que há pessoas de quem gosto, mas tem é de se ter coragem para continuar a sermos quem somos, e nunca traindo os nossos valores e princípios”.

Em pleno Zoo, numa conversa sobre animais que é sobre a vida, o futebol até poderia não encaixar bem. Mas o contrário acontece, não só pelo facto de o desporto-rei ser indissociável da vida de Freitas Lobo, como pelo facto de o jogo ser algo primitivo: “Há toda uma encenação à volta do futebol que é um pouco tribal – o emblema, as camisolas, o sítio onde recebes o forasteiro, o invasor, como se o estádio fosse a tua arena. Esses aspetos vão buscar o lado mais primitivo da emoção humana”.

“Para além disso, gosto do jogo no aspeto técnico e tático. Mas a nossa primeira aproximação é sempre emocional, onde se junta a vontade de ganhar o jogo. Não há idade da inocência no futebol – queremos sempre ganhar”, diz. Luís chama-lhe um jogo e não um desporto e não é por acaso: “[O futebol] pode ser jogado por todos, não há a lógica do mais forte, do mais rápido ou do mais alto – é igualitário”.

Luís Freitas Lobo é visto por muitos como um dos mais influentes opinion makers no mundo do futebol. Para isso, é preciso “conhecimento e emoção”. Ainda que muitos teóricos do comentário desportivo tenham atração pelo treino, Freitas Lobo demarca-se dessa pretensão e nem nos juniores do Salgueiros a tinha. Preferia outras coisas, como trocar a companhia dos colegas no treino pelas miúdas na pastelaria.

“Eu gostava de jogar, mas não de treinar. Na altura havia muito a parte física do treino e a mim interessava-me mais estar a namorar ao fim da tarde. Ou preferia ver aquela miúda estava na pastelaria por onde costumava passar, do que ficar no treino dos Salgueiros até às nove e meia da noite e ainda ter de apanhar o autocarro para regressar a casa”. Mas não temos nós de fazer sacrifícios para nos tornarmos melhores? “Essa é a última palavra que me vão ouvir dizer…”, responde imediatamente.

“Quando me dizem que é preciso espírito de sacrifício para alguma coisa eu digo logo que não”, atira Luís, numa tirada que pode surpreender meio mundo. “Para já, essa palavra não nos aproxima da felicidade em nenhum momento – tem de se ter prazer naquilo que se faz. Quando me dizem que tenho de trabalhar muito eu digo ‘Não’”. A solução volta a ser a mesma: “Temos de gostar de fazer – se isso acontecer até se trabalha 24 horas seguidas. Ninguém diz vou sacrificar-me lá para baixo a jogar futebol”.

Ainda assim, a paixão pelo que fazemos pode assumir várias formas ao longo da jornada e Freitas Lobo é perentório ao explicar que não vive o comentário desportivo da mesma maneira do que quando começou. “A paixão está lá, é a origem de tudo, mas há momentos em que tenho de colocar uma capa profissional. Isso turva a nossa paixão, até a confunde, faz às vezes querermos afastar-nos”.

Entre pavões que saltam o gradeamento para nos cumprimentar e macacos livres que não ultrapassam barreiras, apenas psicológicas, Luís explica a solução: “Depois do jogo [que comentou] vou embora a ouvir música, a Cat Power ou os Kings of Leon – tenho de me desligar. Com a forma como se fala de futebol atualmente, sinto que estão a dar facadas na minha paixão pelo jogo”.

Ainda assim, continua a emocionar-se com o jogo e com o comentário. E ao longo da carreira tem tido muitos cognomes: “Já me chamaram cientista, agora dizem que sou mais poeta ou filósofo… vendedor de sonhos. Para mim são tudo elogios, mesmo quando acham que me estão a criticar… são tudo elogios”, conta, enquanto vamos percorrendo o caminho de saída do parque.

Freitas Lobo não visitava o Jardim Zoológico há mais de 20 anos. Quis levá-lo consigo: “Se pudesse tinha um Zoo em casa. Com coalas, esquilos, suricatas… Adorava ter um pinguim, mas acho que ele não ia achar muita piada. Ou então focas e leões marinhos, animais que adoro, adoro mesmo. Ou cabras selvagens”. A lista parece não ter fim. Luís Freitas Lobo parece um miúdo a falar, com a emoção a percorrer cada um dos gestos que faz para dizer o nome da cada animal. É isso que procura fazer todos os dias, com o futebol – permanecer um miúdo, porque isso significa que a paixão está lá.“E nada nos move sem ela”.

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