A pior coisa do mal é nos acostumarmos a ele”, Sartre

Findo que está o espectáculo em que se tornou qualquer acto eleitoral neste país, a sensação que permanece é a de que o nosso povo se resignou ao papel de mero figurante numa longa peça de teatro, ao qual resta apenas a vitória de se aguentar de pé e continuar a pagar impostos.

Os debates foram feitos por forma a se tratar apenas de lutas de egos, medidas milimetricamente em 25 minutos. Daqui não resultou nada de sólido e, obviamente, não era sequer suposto resultar. Por seu turno, as sondagens, que foram sendo servidas ao jantar e condicionaram seguramente muitos votos, falharam todas de novo, sem que alguém assuma a responsabilidade por tal. Chegados ao resultado final, a verdade é que ninguém parece muito interessado em perceber os caminhos que foram usados para esse (ou para qualquer outro…) efeito.

Tudo permanece impune, rapidamente atirado para um canto e substituído por um outro evento que possa gerar atenção mediática. E nós, quão ratinhos numa roda de uma gaiola, perdemos o foco e rapidamente esquecemos que as pessoas morrem mas as ideias não têm data de validade.

Convertida a política também unicamente a um elemento do show business com que nos entretêm, o que passou a relevar é o hit do momento, a espuma dos dias, a melhor tirada num debate, ainda que desacompanhada de qualquer ideia de futuro. Deixámos de votar em projectos para nos deixarmos capturar por lutas na lama, das quais ninguém pode sair limpo, ainda que uns se mostrem mais à vontade no lodaçal.

Sou das que acha que os resultados eleitorais, estes ou outros quaisquer, são quase irrelevantes porquanto nada muda verdadeiramente. Daqui a uns anos, cada vez mais estupidificados por uma engrenagem que não nos dá tempo para reflectir e que nos inunda de informação desnecessária, estaremos a discutir o mesmo, aliás como o fazemos há décadas, e a pagar outras contas que terceiros milionários deixaram ou em que alegadas parcerias público-privadas resultaram.

Voto, como já escrevi, mais por respeito ao passado do que por crença no futuro. Há, contudo, uma chocante novidade neste acto eleitoral: a generalizada banalização do mal, tornando-se corriqueiro um discurso racista, xenófobo e quase marialva. De facto, o que me impressiona nestas eleições é menos uma vitória absoluta por manifesta falta de oposição firme à mesma do que a aceitação reiterada de um discurso que, por enquanto, a Constituição não permite e, ainda que assim não fosse – e é! –, a ética não pode aceitar.

Há muito que se demonstrou que a pobreza de uns não se resolve com a miséria de outros. Igualmente, julgava eu, era pacífico que os homens são todos iguais, independentemente da raça e da etnia. Usar momentos de crise para instigar o ódio de uns contra os outros e, com tal, conseguir votos foi uma metodologia já usada no século passado, em que milhões de pessoas foram mortas apenas por nasceram na família considerada então errada.

Talvez por isso, o que retive do circo (e, simultaneamente, do deserto de ideias) em que a campanha eleitoral se tornou foi uma frase de uma pessoa na qual nunca votei e não tenciono votar. De facto, há coisas em que a alarvidade não pode passar, sob pena de o mal vencer. A dignidade de todas as pessoas é só a primeira delas. E, apolítica me declarando, faço a minha declaração de interesses: por aqui, também não passará.

Chegaria um dia em que concordaria com António Costa, ainda que marginalmente. Foi este. E, ainda que passe por Portugal inteiro, aqui não também passará porque não há memória de os cantos de sereias, ainda que de barba feita, terem subjacente qualquer outra ideia que a de levar as pessoas ao fundo.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.