O Reino Unido tem tido, por séculos, um séquito de admiradores em todo o mundo. Visto como modelo de democracia, assente no “poder do consenso” social e político, na expressão do historiador François Bédarida, muitos foram os que o encararam como exemplo.

Enquanto a Europa se debatia com as dores do parto do Estado liberal constitucional, embrenhada em revoluções e confrontações civis, o Reino Unido surgia como oásis de estabilidade, assente nos princípios da limitação e separação de poderes, do respeito pelas liberdades individuais e da tolerância, sob a benção de uma religião “temperada”, como a descreveu Disraeli e servido por um escol de talentosos políticos. A tudo isto acrescia a sua condição de potentado imperial, económico e financeiro.

Porém, o século XX trouxe à Velha Albion um longo processo de declínio. A perda de dinamismo económico, agravado pelas duas guerras mundiais e a queda do império, que se sucede à Segunda Guerra Mundial, põem fim a uma era “gloriosa”, que apenas sobreviveu na ritualização da monarquia e na reconhecida qualidade dos seus políticos e servidores públicos, cuja reputação, embora por vezes exagerada pela promoção que os britânicos sabem bem fazer de si mesmos, tem sido, em muitos casos, plenamente merecida.

Porém, nem mesmo esse património restante parece seguro actualmente. Se a centúria passada não foi generosa para os ingleses, o presente século parece ter-se iniciado sob o signo de novo ciclo de declínio, desta feita político e institucional.

Desde logo no civil service, afamado pela sua competência e ética de serviço público, mas que tem ultimamente manifestado sinais contrários: a divulgação dos memorandos do embaixador britânico acreditado em Washington, contendo afirmações pouco abonatórias sobre o presidente norte-americano ou a publicação nas páginas dos jornais de documentos relativos ao estado de saúde do líder da oposição, Jeremy Corbyn, desgraçadamente demonstram-no.

Quanto à elite política, os exemplos de má condução dos assuntos do Estado multiplicam-se: a gestão desastrosa do Brexit, que paralisou Governo e Parlamento ou o comportamento desonroso do ex-ministro da Defesa, Gavin Williamson, surpreendentemente reconduzido no actual Executivo, que divulgou o conteúdo de uma reunião confidencial do Conselho de Segurança Nacional, atestam a má figura que os britânicos têm feito perante o mundo incrédulo.

Simultaneamente, a conduta de certos actores políticos nada tem feito em abono da sua classe e da reputação grangeada pelos seus pretéritos: o apelo de Jacob Rees-Mogg ao boicote das instituições europeias em caso de adiamento do Brexit – pelo qual ele mesmo foi um dos responsáveis ao chumbar na primeira votação o acordo de saída da UE – revelador de falta de sentido de Estado e de dignidade, provando que o fato de Savile Row não faz o gentleman, ou o comportamento arruaceiro dos eurodeputados do partido Brexit no Parlamento Europeu, de costas voltadas para o hemiciclo, num acto de hostilidade e desrespeito por uma instituição democrática, são dois tristes exemplos de comportamento indigno.

Como se tal não bastasse, a nomeação do exuberante Boris Johnson –  aspirante a novo Churchill, com o qual tem apenas em comum o jeito para a frase eloquente e a excentricidade aristocrática, embora no seu caso, de origem longínqua e por via ilegítima – como líder do Partido Conservador e, por inerência, primeiro-ministro, nada augura de bom, conhecidas que são a sua inconstância e a inclinação demagógica.

No que à milenar monarquia diz respeito, parece ter optado, num afã de modernização, por reflectir as mudanças sociais e militar em causas em voga, empenhando-se num activismo que compromete o seu carácter eminentemente simbólico e representativo da continuidade e da tradição, acima da sociedade e dos seus debates, arriscando, em nome de uma popularidade imediata e momentânea, o seu prestígio no longo prazo, pois a sua razão de ser radica precisamente no facto de não ser moderna.

Parafraseando a famosa frase de Marcellus, personagem de “Hamlet”, algo está podre no Reino Unido.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.