Em 1990, o Museu do Prado organizou uma grande exposição com grande parte da obra do luso-andaluz Velazquez, um dos maiores pintores de sempre. Viajámos para Madrid no meu carro com o pintor Eduardo Batarda e outros amigos. Passámos por Toledo para ver “O Enterro do Conde de Orgaz” de El Greco. Sabíamos que as filas para entrar no Prado eram imensas.

Às seis de uma manhã gelada a fila no Paseo já era compacta, grossa e vagarosa, com a maior proximidade social possível.  Algumas cafeterias abriram entretanto. ‘Servicios’ e café. Pouco depois de entrarmos, o museu fechou. Era o último dia. Uma experiência museológica, por todas as razões, inesquecível.

Os museus são locais especiais, que oferecem experiências que funcionam aos mais diversos níveis cognitivos e sensoriais. Mas, como consequência da pandemia Covid-19, há quem tema que a visita ao museu online venha a substituir a visita física ao museu, à estrutura física e à fruição in loco do seu espólio.

Não partilho desse temor. Museus americanos reportam utentes lhes telefonam 90 e 100 vezes por dia a perguntar quando reabrem. “Quero ver as minhas obras de arte preferidas!”, dizem. Estudos revelam que há pessoas que visitam repetidamente o mesmo museu porque há uma ou outra obra que toca sentimentos profundos, ou porque descobrem sempre coisas novas.

Segundo a teoria pessimista, a visita ao museu seria dispensável porque as coleções e exposições estariam disponíveis em sofisticadas aplicações no computador acedidas sem se sair de casa. De facto, alguns museus tornaram esta experiência de certo modo possível e o Google Arts & Culture é um repositório de arte incomparável e de alta qualidade digital. Mas, a sensação que se tem é, creio eu, de imediato, a de uma reprodução do real pixelizada, transmitida por uma rede de telecomunicações e que entrou sob forma eletrónica no meu computador. A coisa verdadeira, essa, não estou a ver. Por outro lado, enquanto a arte bidimensional passa bem no ecrã do computador, o mesmo não se poderá dizer da escultura ou instalação, enquanto não tivermos holografia em nossas casas.

Todavia, tecnologias digitais têm um grande futuro dentro do museu. Esse é um dos temas explorados por muSEAum – Branding os Museus de Mar de Portugal, um projeto financiado pela FCT, e que formou um consórcio de investigação com museus de todo o país. Até setembro, e no âmbito deste mesmo projeto, decorre uma série de webinars (ver em www.museaum.pt) sobre instrumentos práticos de gestão, como por exemplo a realização de estudos de públicos, experiências imersivas ou web design.

É provável que a principal aplicação digital seja a disponibilização de informação sobre peças e coleções nos smartphones dos visitantes acedidas quando se visita o museu, como complemento à informação já disponível e como guia que sugere e orienta percursos dentro do museu. Por seu lado, as aplicações digitais interativas tácteis têm pela frente um futuro tecnologicamente mais complexo. Será preciso descobrir e aplicar tecnologias que permitam interatividade sem necessidade de toque com os dedos.

A limitação do contacto físico, seja através de dispositivos digitais ou de toque em elementos expositivos, como aconteceu por exemplo na exposição “Museu das Descobertas” no Museu Nacional de Arte Antiga, é, na verdade, um retrocesso na experiência museológica. A vontade de tocar é para muitas pessoas um instinto irreprimível.

O tacto fornece informação que os olhos não conseguem decifrar e o ouvido não consegue fornecer. Para impedir o impulso táctil, os museus têm guardas em cada sala que protegem as peças expostas do toque dos visitantes. Quem compra roupa na loja toca sempre para sentir a qualidade do tecido. Quem vai ao concerto da estrela rock quer ficar na fila da frente para tocar na mão da estrela. Quem vai à Praça de São Pedro, leva a criança para a fila da frente para receber um beijinho do Papa. Não basta vê-lo, pode ser ilusão. É preciso tocar-lhe para se ter a certeza que é real, que existe mesmo.

Muitos museus estão a reabrir. A 1 de junho reabre o museu das crianças em Houston (The Children’s Museum), Texas. A máscara e o distanciamento social são obrigatórios. Receberia cinco ou seis mil pessoas por dia (um número extraordinário), mas irá limitar o acesso a 560 entradas. Estarão desativados 48 elementos interativos, daqueles que se toca, assim como uma estrutura de três andares para escalada. Às crianças será oferecida uma caixa com vários items para levar para casa. Coisas mesmo que se tocam.

Um artigo da designer de exposições Emma Thorne-Christy, baseada em Los Angeles, em “MuseumNext”, revista online de uma empresa inglesa especializada em eventos relacionados com museus, é uma espécie de manifesto em favor da “exposição física” e contra a transferência das exposições e coleções de museus para o online.

Os museus e as exposições, tal como a maioria dos media, são baseados em narrativas (storytelling), têm uma estrutura progressiva ou linear, permitem aos visitantes vaguear pelo museu, voltar atrás, em total concentração daquilo que se lhes depara ou procuram. Segundo Thorne-Christy, no museu há um investimento físico – é preciso levar-se a si mesmo até lá e fazer um percurso pela coleção ou exposição – enquanto no online não há movimento para além dos dedos no teclado do computador. Há menos investimento físico e a concentração é mais frouxa.

O principal argumento avançado por Thorne-Christy a favor da visita ao museu e contra o museu virtual é que o ambiente imersivo oferecido pelo museu ou exposição, mesmo sem quaisquer complementos digitais, tem impactos poderosos sobre a experiência de visitante. O medium – constituído pelo próprio espaço do museu e pelas peças exibidas – perdem no digital a quintessência da sua qualidade que é a sua fisicalidade. Li algures que, se o “David” de Michelangelo falasse (há quem acredite que ele fala), contaria que algumas senhoras, ao longo dos séculos, algumas tendo viajado milhares de quilómetros para o ver, à sua frente desmaiaram em transe perante tamanha beleza.