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A formação académica de (ex)jogadores profissionais de futebol e o caso Tarantini

Não obstante o crescimento dos estudos acerca da relação entre o desporto e a educação, há ainda uma lacuna significativa nesta matéria, sobretudo na modalidade futebol; certamente não será indiferente a falta de tradição académica familiar, possivelmente devido à origem social desfavorecida da maioria dos atletas.
17 Agosto 2022, 06h15

As notícias recentes sobre a atribuição do título de doutor ao ex-jogador profissional de futebol Ricardo José Vaz Alves Monteiro, “Tarantini”, pela Universidade da Beira Interior, incitam à reflexão sobre a falta de formação dos jogadores profissionais de futebol e das consequências que isso acarreta nas suas vidas pós-futebol.

Não obstante o crescimento dos estudos acerca da relação entre o desporto e a educação, há ainda uma lacuna significativa nesta matéria, sobretudo na modalidade futebol; certamente não será indiferente a falta de tradição académica familiar, possivelmente devido à origem social desfavorecida da maioria dos atletas.

Outrossim, segundo os poucos autores que se têm dedicado a conhecer o fenómeno por dentro, designadamente no Brasil, através da recolha e análise de histórias de vida de atletas estudantes, conciliar o futebol com os estudos é uma tarefa desafiante. Na realidade, um processo pleno de dilemas, percalços, dificuldades e sacrifícios, impostos desde muito cedo aos jovens atletas da formação, sincronicamente em idade escolar, tendo de dividir-se entre estudos, treinos e, ainda, abster-se de socializar.

Com efeito, são (re)conhecidas as dificuldades dos atletas estudantes, designadamente: i) na conciliação de horários escolares e de treino desportivo; ii) na gestão dos conteúdos programáticos e da intensidade de treino; ii) no distanciamento existente entre os clubes e a academia, à exceção dos cursos de desporto e, não obstante, uma maior flexibilização curricular; iii) no dilema de optar entre assistir às aulas ou treinar e o risco de sanções associadas à perda da titularidade, reprovação nos exames ou ambos; iv) na renúncia às saídas noturnas e à diversão entre amigos na adolescência e enquanto jovens adultos.

Conscientes destas dificuldades, há, ainda assim, cada vez mais atletas que decidem fazer esse percurso. Ora, sendo a carreira desportiva sujeita a diversos acontecimentos futuros e incertos, especialmente lesões, tem na idade a sua condição mais cruel. Com efeito, apesar de atualmente as carreiras, mesmo ao mais alto nível, atingirem uma maior longevidade, são ainda exceções, pois em geral terminam por volta dos trinta e poucos anos. Nessa idade, a ausência de formação académica limitará significativamente as opções de reintegração no mercado de trabalho à margem do futebol – que infelizmente não pode absorver todos os ex-atletas –, pelo que muitos terão de reinventar-se profissionalmente. Porém, os ex-atletas padecem do paradoxo “jovem velho”. i.e., sendo biologicamente jovens, são “velhos” para entrarem no mercado de trabalho pela primeira vez. Conquanto, dotados de excelentes soft skills, os atletas são oriundos de um mundo de privilégios, protagonismo e mediatismo, que decresce abruptamente no fim da carreira, sendo vítimas de desvalorização e perda de status quo, motivo de depressão e dificuldades de adaptação à mudança para uma nova realidade que desconheciam.

Sem embargo, o atual contexto é muito mais favorável do que há duas ou três décadas atrás. De facto, anteriormente o cenário era manifestamente mais difícil e pobre. Verdadeiramente, o futebol não era, ainda, a indústria milionária, nem mediática que é atualmente, tampouco se encontrava tão bem organizado e profissional como está presentemente em Portugal e no mundo. Ilustrando, de acordo com o portal transfer market, só a Liga Portugal Bwin vale 1.11 mil milhões de euros, sendo das mais pequenas.

Nada obstante, continua a ser extremamente difícil conciliar o futebol profissional com o ensino, especialmente ao nível superior, licenciatura ou pós-graduação, tanto mais que os atletas de futebol habitualmente casam cedo, acumulando concomitantemente responsabilidades familiares, de esposa e filhos a cargo.

Neste quadro, como indicia a literatura da especialidade, seria interessante e pertinente desenvolver esta linha de investigação. Além do mais, isso permitiria apurar factos, estabelecer um perfil dos atletas estudantes e concluir sobre a influência da formação académica nos respetivos futuros profissionais e propor à tutela soluções direcionadas.

Para concluir, valorizando muito e felicitando o Tarantini pela conquista, parece-me, contudo, extemporâneo noticiar o pioneirismo, sobretudo em razão da falta de estudos e, porventura, pelo facto de outros casos não serem tão mediáticos, nem noticiados na imprensa, o que pode induzir o público em erro. Ademais, o que verdadeiramente importa é impulsionar a discussão em torno do fenómeno, especialmente numa sociedade como a nossa, onde o futebol é o desporto rei e presta um serviço social significativo no que respeita à inclusão social dos mais desfavorecidos, tanto pela esperança de uns, quanto pela catarse de outros.

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