Segundo parece há um novo programa de Governo. Que, para que ninguém se aborreça ou canse muito, foi acusado de ser a cópia quase total do programa eleitoral do PS. Será mesmo? Pedimos desculpa para esta interrupção: o doutor Porfírio Silva, membro do partido maioritário, já nos elucidou: “O programa do Governo é 99,5% textualmente igual ao programa eleitoral”. Uff! O trabalho que nos poupou para descobrir as diferenças. Onde está então Wally? Em lado algum.

O mundo mudou em seis meses, mas o PS e o Governo mantiveram-se firmes e hirtes contra os raios e os coriscos. Assim, o programa do Governo é só papel reciclado. Com algumas rasuras. Talvez por isso, com a sua empática elegância, capaz de adormecer toda a nação, a ministra Mariana Vieira da Silva, em vez de cantar o “Vamos Dormir”, leu o programa. Ou parte dele. Às tantas, um pouco confundida, disse que pedia desculpa porque tinha começado a ler uma folha repetida. O país descansou: por momentos julgou-se que o Programa do Governo fosse apenas uma folha repetida vezes sem conta.

O excitante documento governamental mostra que para o PS e para o Governo o mundo não mudou desde Dezembro de 2021, quando a original prosa foi redigida pelos especialistas que normalmente tomam decisões que seguem as que lhes foram pedidas. Nada mais do que um chá das cinco formal, para quem não conhece o país para lá do computador, do ar condicionado e do seu gabinete.

 

 

Para os lados de São Bento a inflação não existe. E será ela que determinará em muito o que será Portugal nos próximos tempos. Sabe-se que a inflação consome os rendimentos e faz com que seja necessário ganhar mais para, na realidade, ser mais pobre. Os primeiros sinais já aí estão à vista. Escreveu Stefan Zweig que os nossos países tinham voltado a ser imorais por causa do grande engano da inflação. Nada envenenou tanto o povo alemão, nada incendiou tanto o seu ódio e nada maturou tanto o advento de Hitler como a inflação. A democracia caiu e ficou a ditadura.

Mas, para já, e para o novo Governo, tudo corre bem. O que interessa são os fundos do PRR, o maná dos céus, e a sua distribuição. É claro que uns querem uma coisa, outros querem outra e ainda há os que não sabem o que querem, o que é normalmente a maioria. Mas há um pequeno núcleo que sabe bem demais que quer as mais suculentas fatias do hambúrguer do PRR. Isto enquanto os portugueses vão ter de se habituar a viver na roleta e a perder.

Alguns julgam viver ainda em tempos de cisnes brancos quando, na verdade, aparecem com cada vez mais frequência os cisnes negros. E Portugal, país de curtos-prazos, só pensa na sopa do dia-a-dia. É certo que ainda não se sabe se é a Vida que copia a Arte ou se é a Arte que imita a Vida, mas Groucho Marx dava uma pista: ele intuía que algo não estava bem quando em Central Park os que passeavam já não davam de comer aos pombos, mas eram os pombos que serviam de comida aos que passeavam.

Esse vai ser o combate principal dos próximos tempos. Não para o Governo, pelos vistos. Até porque Portugal, na sua mediocridade pós-moderna, continua a parecer a carga da brigada ligeira: acha que os problemas de hoje se resolvem com as soluções de ontem ou, melhor, encolhendo os ombros enquanto o tempo se encarrega de resolver as coisas. E estas são muito graves.

Portugal continua a divergir do padrão de desenvolvimento dos 27 Estados da UE. É o sétimo país mais pobre da UE, começando a lutar pelo último lugar com a Bulgária e a Roménia. É um agradável consolo, para quem tem agora um programa de Governo que diz ser capaz de dar ritmo competitivo ao país. A questão é outra.

No seu manual de resistência como náufrago o Governo agarra-se a um pneumático que flutua, mas aí não há soluções porque ele é o problema. A culpa é, claro, de inimigos sem cara: a guerra, a pandemia, uma seca. Tanto dá. A quem se pode culpar? A oposição, desidratada, não serve. O objectivo é só cansar a oposição, o que não é difícil, porque ela é um fantasma. Assim resta à geração governativa organizar uma viagem de promessas. A redistribuição de misérias, perante a frieza dos números.

Portugal é cada vez mais um país que não pensa, ou desistiu de pensar. Vai vivendo. Para quê conhecer a história e a filosofia, se a ideia é que ninguém pense? Deprime-se o bolso e a cabeça e fingimos que somos indivíduos autónomos e livres. Somos uma tragédia e a ideia é que sejamos apenas uma estatística.

O Governo não está só nesta grotesca acção para transformar tudo isto num país liofilizado. É ajudado por uma triste e auto-proclamada elite, onde se cruzam o doutor Durão Barroso (que hoje parece ser o grande “moralista”, depois dos estragos a que esteve ligado), o esquecido doutor Manuel Pinho, ou os que em nome de abraçarmos os que foram escorraçados de Portugal estão mais atentos aos negócios dos passaportes. E tantos outros que vivem dos negócios com o Estado em nome da iniciativa privada.

Não temos centros de “decisão nacional”, nem capitalismo a sério. E, sobretudo, não pensamos a médio ou longo prazo. Iludimo-nos com decisões que empurram os problemas com barriga para a frente.

A lição cultural que se pode tirar da composição deste Governo é esta: não se procura ideias novas, mas sim companheiros de saudação. Há pouco tempo o filósofo italiano Nuccio Ordine dizia que a escola de hoje educa os alunos como frangos de engorda para que sejam consumidores passivos. Todos têm o mesmo peso e comem os mesmos alimentos para atingir a licenciatura num tempo específico. A cultura política nacional faz o mesmo: criou aviários, onde todos os que entram no círculo do poder dizem o mesmo e praticam o mesmo tipo de dança.

 

 

A alma russa

No fabuloso filme que é “Ivan, o Terrível”, que Sergei Eisenstein realizou na época de Estaline, desvenda-se que a Rússia começou com a expulsão dos mongóis de Moscovo. Dois séculos depois, a Rússia começou a ser uma potência, com Pedro, o Grande, com o avanço para a Sibéria, mesmo com a oposição das populações mongóis, que tinham invadido a Índia (os mughals) ou estavam a conquistar a China (os manchus) e foram afastados da Ásia Central.

Não deixa de ser curioso como 500 anos depois os “mongóis” chineses sejam os maiores protectores da Rússia de Putin, negando todo esse tempo que contribuiu para a identidade da Rússia. Que acontecerá? Ninguém sabe.

Mas, nestes tempos de “cultura de cancelamento”, o radicalismo começa a impedir de se olhar para toda a história. Querer proibir Dostoievski ou Tchaikovsky “porque são russos”, é amputar parte da cultura europeia e global. Será sempre um erro identificar a cultura e o legado da Rússia com um tirano. Que seria da cultura europeia sem ler Tolstoi e “Guerra e Paz”? Ou seja, o príncipe Anatole Kuraguin ou Natasha? A Rússia é Tolstoi, Dostoievski, Pushkin, Turguenev, Mandelstam, Akhmatova. É a sua arquitectura, o bailado, os filmes. É também a tirania dos czares, de Lenine e Estaline, as grandes purgas, a deportação de minorias, a proibição de pensar livremente.

Há sombras e luz na cultura e vida russa, próprias de um império que nasceu e ficou. Talvez o génio desses criadores esteja ligada à história atormentada dessa nação eslava, a essa mistura de ocidentais e orientais, ao gélido inverno que desfaz as almas e os corpos. Putin é filho da pior Rússia, da autocracia, do maquiavelismo, da desconfiança e da crueldade. Frio como Stavroguin, o personagem de Dostoievski, que diz não saber a diferença entre o bem e o mal. O actual dono do Kremlin está a destruir a imagem da Rússia e da sua cultura. Não o devemos ajudar nessa tarefa.

 

 

Na terra das desilusões

Há obras surpreendentes. E este é o caso deste romance de George Orwell, “História de um homem comum”, escrito em 1939 algumas semanas antes do início da Segunda Guerra Mundial e que, na realidade, foi o primeiro sucesso real da carreira de Orwell. Algo surpreendente, porque já havia escrito “Down and Out”, “Burmese Days” e Homenagem à Catalunha” naquela época.

A história é sobre George Bowling, um vendedor de seguros, que teve uma grande ideia no dia em que saiu do trabalho para colocar a sua nova dentadura postiça. Com o dinheiro que ganhou recentemente com um cavalo numa corrida, decide revisitar a sua juventude e regressar à vila de Lower Binfield, onde cresceu. Isso é uma tentativa de reavivar memórias de infância e talvez pescar. Essas memórias e peixes transformam-se em latas enferrujadas quando as realidades da Grã-Bretanha moderna atingem George com força e ele percebe que nunca pode voltar ao passado.

George também está preocupado com a guerra que está para vir e com o mundo que existirá depois dessa guerra acabar, antecipando o que Orwell escreveu em “1984”.

Às tantas George tenta definir-se: “Sou vulgar, sou insensível e adapto-me a todas as situações. Enquanto houver algures no mundo onde se venda à comissão, enquanto eu puder fazer uns tostões com descaramento e arrojo, tipos como eu conseguirão sempre a ganhar a vida – ganhar a vida, sim, e não fazer fortuna – e mesmo em tempos de guerra ou revolução, fome ou pestilência, aposto que conseguia sobreviver por mais tempo do que outro. Sou esse género de pessoa”.

Mas, no fundo, sobrevive. Basta lembrarmo-nos de que estamos em 1939: somos todos chefes de família respeitáveis, o que quer dizer, conservadores ou simpatizantes e vagabundos. Cada um desses pobres oprimidos, que suam para pagar o dobro do preço adequado por uma casa de bonecas de tijolos chamada Belle Vue, porque não há vista para lado algum e a campainha não toca.

George Bowling é um vendedor de seguros, com uma esposa que não ama e dois filhos que considera irritantes. Os pensamentos de George continuamente voltam para o tempo antes da Primeira Guerra Mundial: 1913! Lembra a quietude, a água verde, as correrias. Isso nunca regressará. O sentimento de não ter pressa e não ter medo. Talvez uma guerra, talvez uma queda. Para onde quer que vamos, vamos para baixo. Para a sepultura, sem saber. E ninguém pode enfrentar esse tipo de coisa a menos que tenhas o sentimento certo dentro de ti. Há aqui sempre uma luta eterna por um pouco de dinheiro. Um eterno barulho de autocarros, rádios, campainhas telefónicas. Nervos desgastados em pedaços, lugares vazios nos ossos de todos os que ali vivem.

Orwell escreve de forma extraordinária sobre o mundo que Lower Binfield representou e com grande desdém pela Inglaterra que George ocupa actualmente. Mas as suas intuições mais devastadoras dizem respeito ao mundo vindouro.

Os momentos verdadeiramente orwellianos ocorrem não tanto quando essas forças externas são exercidas (“Big Brother”), mas quando nos tornamos os seus cúmplices. Este é o grande olhar de Orwell, duramente conquistado na Guerra Civil Espanhola, e transferem-se para o mundo político moderno, onde meras diferenças políticas cedem ao ódio ao outro, e mesmo aqueles com as melhores intenções se tornam monstruosos, capazes de atos horríveis.

Sem tirar nada de ”O Triunfo dos Porcos” ou “1984”, este livro é talvez um romance ainda mais impressionante. É profético na sua atmosfera, oferece apenas o fracasso como antídoto para o país que se transformou em cidade, e onde ninguém o conhece ou se lembra dele ou de sua família – tudo é desilusão. George regressa a Londres novamente com o conhecimento adquirido de que não há volta, que o que está por vir – por mais horrível que seja – não pode ser interrompido. Só resta a honestidade na imagem de um homem nem intelectual nem tolo.

George Orwell, “História de um homem comum”, E-Primatur, 239 páginas, 2022

 

 

Uma luz intensa

Isabel Rato move-se entre o jazz e a tradição clássica com a elegância de quem caminha sobre nuvens de sonhos. Parece trazer a paz, mas não esquece a luta das almas. A sua caminhada, até agora, foi extenuante, mas agora busca outra luz, mais intensa. O disco do seu Quinteto chama-se “Luz” (CD Nischo 2022), e é muito estimulante. O piano é a síntese, ou seja, o grande unificador deste disco que segue as águas do jazz como referência.

Forma-se a partir de tudo o que já se conhecia da sua dinâmica aventura pelo mundo da música e que “Para Além da Curva da Estrada”, a sua estreia em 2016, já adivinhava. Junte-se aqui que Isabel Rato junta as qualidades de instrumentista e compositora. Afinal ela faz parte dessa nova geração de novos, activos e ambiciosos nomes que vão abrindo janelas para a planície musical a partir do jazz. Embora no caso, a sua formação seja a música clássica (e também não é indiferente para estas aventuras, a influência de João Paulo Esteves da Silva, nome de culto no que se refere a muita desta nova geração), a abrangência é uma forma de dançar livremente nos sons.

Por isso, jazz, clássica e tradição folclórica unem-se, e no caso deste novo disco, também ligações outras, como as de um compositor israelita, Shai Maestro (escute-se “From One Soul to Another”), ou da voz de Cristina Branco (“Ó Laurinda, Linda, Linda” é magnífico), de Sofia Vitória ou mesmo do Quarteto Arabesco. Com ela trabalham João David Almeida, João Capinha, João Custódio e Alexandre Alves, músicos de uma solidez gravitacional. Disco de grandes afinidades portuguesas em torno da coloração de sons mais globais, este é um disco, como se escuta nos tradicionais “Vós Chamais-me Moreninha” ou “”Nana, Nana, Meu Menino”. E é uma lufada de ar fresco no nosso reino musical, renovando. Algo que a música portuguesa necessita.

 

 

Memória de Oliveira

Foi estreado apenas no final de 1942, mas iniciou o longo caminho de um dos mais reputados realizadores portugueses, Manoel de Oliveira. “Aniki-Bobó”, produzido por António Lopes Ribeiro, marcou uma época. E o próprio cinema nacional.