A reclusão em nossas casas trouxe uma espécie de glorificação do teletrabalho e a sua afirmação como uma solução possível para superar a paralisação da economia. No entanto, trata-se, igualmente, de uma invasão do nosso espaço privado e tempo de descanso, acentuando a desconstrução do nosso modus vivendi.

O teletrabalho representa, em si, a eliminação da diferenciação política e social entre a esfera privada e a pública, conforme escreveu Hannah Arendt. A crise causada pela Covid-19 intensificou a adopção do teletrabalho, não só por razões de saúde pública, mas, também, porque muitas empresas tentam, nesta fase, reduzir prejuízos e, consequentemente, evitar a extinção de postos de trabalho. Esta solução encontrada pelas empresas acaba por acentuar a ideia de ausência de um espaço sem trabalho.

De recordar, por exemplo, que, ainda antes desta crise, em França, sentiu-se a necessidade de reconhecer, através de mecanismos legais, que o trabalhador teria o direito a desligar o seu telefone depois de sair do trabalho, procurando-se, assim, preservar o seu direito (fundamental) à privacidade e à intimidade. Esta ideia, que nos parece tão singela e óbvia, assumiu-se como uma espécie de reconstituição, pelo Estado, de um direito fundamental dos trabalhadores que as empresas procuravam capturar.

Muitas empresas qualificam a atribuição de um telefone de serviço como uma regalia, mas, na realidade, esta medida não passa de uma estratégia das chefias que pretendem maximizar a rentabilização dos seus recursos humanos. Neste contexto, são promovidos inúmeros contactos e esperadas respostas depois do horário normal de trabalho. Isto mostra como as empresas pretendem reconfigurar as relações de trabalho e impor novos níveis de autoridade sobre os seus trabalhadores.

Assiste-se, deste modo, ao domínio do trabalho sobre todas as esferas da nossa vida ou todas as dimensões do nosso tempo. Por isso, numa altura de crise que obrigou a um confinamento humano involuntário, tornou-se necessário encontrar uma solução de produção através do teletrabalho. O que consagra, por conseguinte, que uma existência sem trabalho na era moderna é impossível, sendo essa a ontologia da vida na modernidade e um caminho sem volta para os sujeitos do nosso tempo.

É, neste sentido, que surge um sentimento de angústia ou até mesmo de autoconsciência e de culpa dos trabalhadores confinados, por causa do medo evidente de ficarem sem o seu posto de trabalho no pós-crise. Assim, alguns sujeitos optam por trabalhar mesmo colocando em risco a sua própria vida. O que reforça a visão ontológica da modernidade, segundo a qual uma vida sem trabalho se tornou, socialmente, impossível.

Por isso, cabe também aos governos assegurarem essa ordem ontológica através da manutenção dos postos de trabalho, sendo mesmo o indicador mais importante para avaliar o bom ou mau desempenho de um governo.

Portanto, esta crise mostra a necessidade de assegurar os postos de trabalho como uma expressão da ordem ontológica da humanidade. E, se atendermos à linguagem, logo encontramos essa razão de ser da ontologia moderna, porque hoje qualificamos um estado circunstancial com recurso ao verbo “ser”.

Por exemplo, não ouvimos a expressão “estou rico”, mas, sim, “sou rico”, como se a riqueza fosse uma parte do constitutivo humano e não uma exteriorização da nossa acção no (e através do) meio. Em suma, e de acordo com esta lógica, somos uma força de trabalho e não estamos (inseridos) numa cadeia de produção económica.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.