No quarto dia da invasão, sob fogo de artilharia, o historiador e escritor ucraniano Taras Bilous escreveu de Kiev uma carta à esquerda ocidental. Esta carta exige uma resposta – entenda-se, não uma réplica, mas uma resposta de corpo presente.

É claro que não se pode amalgamar toda a esquerda ocidental numa só, as diferenças na esquerda portuguesa, por exemplo, demonstram-no bem. Mas no presente contexto “Esquerda ocidental” não pretende constituir o sujeito de uma afirmação verdadeira ou falsa. É uma interpelação, uma convocatória imperativa, da esquerda para a esquerda, do Leste para o Ocidente, a chamar a atenção para a inscrição em lugares e territórios concretos. A realidade não é um lugar único. Onde se está importa.

I. A desterritorialização ocidentalizada do Ocidente

A desterritorialização da esquerda ocidental é ainda uma forma de afirmação do privilégio do Ocidente. A título de exemplo, circulou nas nossas redes sociais um cartaz a ilustrar um evento público em Lisboa pela “audeterminação e solidariedade entre os povos” sem, no entanto, conter uma única menção ao povo ucraniano ou simplesmente à Ucrânia.

Esta afirmação abstrata, assim desterritorializada, de que se rejeita Putin, aliás ao lado da recusa da NATO, sem o referente concreto do povo ucraniano, falha clamorosamente a solidariedade que enuncia. Pode ter acontecido inadvertidamente, pouco importa; importante é notar como ilustra muito mais o problema da esquerda ocidental do que o problema a que o cartaz se refere.

A esquerda ocidental interpelada, que é tão pródiga a criticar, e bem, a noção de um ‘Ocidente’, pratica-o, no entanto, na forma como se desterritorializa e impõe essa ausência à compreensão do mundo e às exigências de tomada de partido. É precisamente essa ausência de lugar – que é um ponto de vista universal posto pela negativa – que está a ser confrontada com o ponto de vista muito concretamente situado de uma esquerda do Leste, com a sua memória de ameaça e o seu presente trágico de agressão.

Talvez esta esquerda ocidental tenha caído na armadilha de, no confronto com uma hegemonia capitalista, ocidental, predatória, neocolonial, optar por uma “alter-hegemonia”, mas que prolonga o ascendente ocidental no seu privilégio securitário muito localizado. Só na Europa podemos abstrair-nos de que estamos na Europa.

Disto é indissociável, aliás, o excepcionalismo com que a esquerda ocidental interpelada encara a Europa onde vive e age politicamente. E se é claro tudo o que devemos à sua persistente luta contra a desigualdade, indiscutivelmente ao lado da parte oprimida e vulnerável da sociedade, em nada isso deve escudar, dispensar ou enviesar um debate que se tornou dolorosamente crítico com a invasão da Ucrânia.

A excepcionalidade como a esquerda europeia ocidental se representa o seu território geográfico, político e cultural, é um modo de prolongar tacitamente um ocidentalismo. Na pressuposição de que o único, verdadeiro imperialismo, colonialismo, inimigo dos povos, é o que vem dos que se representam como “Ocidente”, assume para si, mesmo que para o condenar, o poder exclusivo de ser o sujeito colonial, imperial, inimigo dos povos.  A carta de Tara Bilous mencionada acima refere um artigo de 2018 da activista síria-britânica Leila Al-Shami que põe o dedo na ferida: «Tudo o que acontece é visto através do prisma do que significa para os ocidentais – apenas os homens brancos têm o poder de fazer história.»

E este é um viés que distorce. Por exemplo, quando a esquerda ocidental sublinha o carácter ameaçador da NATO, coberta de razões, mas esquece o reconhecimento e a compreensão do facto de que, infelizmente, para todos os países realmente independentes que fazem fronteira com a Rússia a NATO é muito desejada como protecção para uma ameaça maior. As causas deste esquecimento estão nesta incapacidade de pensar outro sujeito além do Ocidente. Todos os demais são secundários, figurantes ou farsantes.

Esta indulgência com os outros agressores é, na realidade, muito autoindulgente. Temos uma esquerda que não se desterritorializou no sentido de que falava Deleuze e Guattari, o que envolveria não menos reterritorializações, mas no sentido de um abandono da proximidade, um ponto de vista abstracto que não precisa de coordenadas nem bússola, não precisa de olhar para os lados, nem para trás, apenas de cima, confortavelmente, lugar que só a ela é garantido. Mas os êxodos a olhar para trás e para cima o tempo todo têm uma direcção que não pode ser ignorada. E os cartazes que fazemos pela solidariedade entre os povos falham se não nomeiam a Ucrânia e o seu povo. Na verdade, a desterritorialização sem reterritorialização da esquerda ocidental interpelada por Bilous e Al-Shami nunca se desterritorializou. Até se garante a perpétua fixação do seu território político-cultural enquanto não se questionar por que se recusa o adjetivo “ocidental”.

Por exemplo, podemos desejar uma Alemanha desmilitarizada, mas devemos desejá-lo com base na convicção de que a Alemanha em particular, pelo seu carácter nacional, como se ontologicamente, tem de não ter armas? Mais amplamente, podemos desejar uma Europa sem armas, mas devemos desejá-lo porque se trata precisamente da Europa, com o seu passado colonial, imperialista, genocida até? Se o Ocidentalismo cava fundo uma essencialização dicotómica, esta forma de abstrair o Ocidente só conserva a sua identificação e da mesma maneira essencializada.

Há um debate, pois, que tem de ser feito a ocidente sobre este resto de Ocidente com letra grande, essa condição ocidental que, abstraindo-se da sua contingência, em vez de se reintegrar no mundo, como urge fazer, prossegue o trabalho do esquecimento da contingência, a sua e, pelo caminho, a dos outros. É assim nos cartazes, nas palavras de ordem, nos discursos políticos, na análise.

II. Os entrincheiramentos abstractos da teoria

Concomitante a esta aparente desterritorialização ocidental, que nos abstrai, é a tendência para entrincheiramentos territoriais, entre campos abstractos que se fecham sobre si mesmos, incomensuráveis uns aos outros, com trincheiras à volta que não vêem para fora deles, que reagem em função de um dispositivo argumentativo dado, que faz das evidências apenas trabalho de reiteração, não importa o que esteja em causa, em suma, campos onde a coerência dos meios e dos compromissos se faz valer mesmo se em contradição com os fins a que aqueles se propunham.

É esta esquerda que perde capacidade de ler a realidade sem o viés da suspeita, da conspiração, por vezes delirante, quando não mesmo manipuladora e desonesta, e que exacerba a força dos contextos como um determinismo mecânico de acção e resposta. Boa parte da reacção da esquerda anti-capitalista à invasão da Ucrânia é desastrada, como o foram, aliás, as suas primeiras reacções à pandemia, porque em ambas as ocasiões se mostrou surpreendentemente incapaz de ler a novidade, de pensar o que não se deduz do contexto passado e das suas lealdades. A magnificação do contexto histórico é a morte da própria história.

Não pode ser indiferente se Putin protesta contra a presença da NATO por perto, ou se, mais do que isso, Putin ameaça fronteiras, as passa e invade, ou se comete crimes de guerra, bombardeia hospitais, devasta as estruturas civis de um país, ou se chega a colocar a guerra atómica no horizonte… a inconcebível mas real possibilidade de ir até a um fim do mundo. Cada um destes cenários significa por si, exige avaliação, tomada de posição, compromisso, até acção. Um contexto de fundo no tempo histórico não pode absorver as diferenças entre estes cenários, cada um deles texto novo que definirá contexto futuro. E o exercício da comparação no espaço global não pode neutralizar a realidade que nos acontece aqui e agora.

III. O ponto de vista dos povos não é contornável

Devemos a Thomas Kuhn, o autor de “A Estrutura das Revoluções Científicas” (1962), a identificação da organização da prática científica em paradigmas incomensuráveis, em que nada força racionalmente uma pessoa a abandonar um em detrimento de outro. Este auto-centramento até pode ser confrontado, como foi por autores como Imre Lakatos, que não deixando de o reconhecer tomaram como excessiva uma incomensurabilidade insolúvel em ciência. Em alguma etapa, com o tempo, a objectividade acumulada sobreleva a incomensurabilidade. Simplesmente, na ordem da compreensão política não é assim. Quando falamos de factos históricos, percepções de injustiças, choque de valores, visões de mundo, a incomensurabilidade resiste e persiste.

Na verdade, nestes contextos, à incomensurabilidade chamamos muito positivamente dignidade e autodeterminação. Cada um, cada colectivo vive as conviccões, as dúvidas, as angústias formadas por uma experiência única, com percepções de segurança e ameaça que variam consoante a sua circunstância, e que explicam uma escala de valores contingente. Por isso, ninguém pode estimar e julgar pelo sofrimento alheio. O ponto de vista dos povos não é contornável. A incomensurabilidade ou é respeitada e assumida, ouvindo e comunicando, ou conduz à violência do paternalismo, esse terrível mal da política dos que presumem ter razão sobre as consciências dos outros.

Saber viver com a relatividade das convicções não é relativismo, é o regime possível de uma ecologia da dignidade e da pluralidade contraditória das razões e das realidades que a formam.

IV. Ter medo, corajosamente; ter empatia, criticamente

Só a loucura inimputável ou uma irresponsabilidade muito censurável não encara os dias que estamos a viver como tempos de muito justificado medo. Também de bravura, dignidade e coragem. Mas, atravessando todas estas atitudes, o medo, pelas vidas dos ucranianos, mas também pelos russos em fuga, e até por todos diante de um cenário que pode chegar a ser o de guerra mundial. A coragem não é o medo vencido heroicamente pela acção, e assim deixado para trás, mas a acção informada pelo medo que não nos larga. Loucos são os que agem sem medo. Sintamos o medo da guerra estranhando os nossos prédios impolutos, ou os estrondos à volta inocentes, ou o nosso sono sem insónia.

A empatia tem que ver com isto. Sentirmos no que acontece aos corpos e emoções dos outros os nossos, e anteciparmos nas nossas experiências acontecerem as dos outros. É uma disponibilidade para o que nos precede de comum e nos vincula. Pormo-nos na pele dos outros, nos seus sapatos, territorializar, dar e receber pontos de vista.  É certo que a empatia nos exige sentido crítico. Se não a politizarmos criticamente, facilmente servirá a uma ordem política selectiva. Racismo e empatia não são incompatíveis.

Mas é preciso ver bem.  A que serve desconfiar que a devastação de Aleppo ou o acolhimento dos refugiados sírios motivou clamor e sensibilidade menores do que com os ucranianos agora? A consciência ética e política deve resistir a uma empatia que selecciona acriticamente. Deve fazer-nos pensar, mas em nada deve diminuir o clamor agora. A bitola ser a nossa vergonha ou a denúncia de eurocentrismo, cinismo, até racismo, e não a indignidade onde ela acontece apenas confirma a autorreferencialidade da esquerda ocidental, a falar de si e dos seus atavismos para o mundo inteiro, a usar, mesmo se inadvertidamente, o horror alheio, como pretexto para o seu processo político, sempre excepcional.

Esta é a crítica construtiva dirigida não importa a quem ou a que partido, pois é uma interpelação que nos respeita a todos os que, reconhecendo-se da esquerda anti-imperialista (anti-capitalista ou outra), jamais aceitarão o epíteto de que são iliberais. Uma esquerda dos povos não se abstrai, comparece.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.