Assistimos na semana passada a um espetáculo público em torno das Forças Armadas e, em concreto, da Marinha ou Armada. Um espetáculo que tenho pejo em qualificar e que degradou todos os intervenientes, diretos ou indiretos, da Armada ao Governo e dos Almirantes envolvidos ao Presidente da República.

Por formação, por cultura e por opção de cidadania habituei-me a considerar que certas áreas do Estado deveriam ser tratadas pelos atores políticos e pelos cidadãos com alguma reserva, contenção, também formalismo, e um espírito de cidadania elevado. Os assuntos relacionados com as Forças Armadas da Nação estão claramente em zona cimeira dessas áreas.

Essa diferença de tratamento está relacionada com o papel de especial dignidade da função, pela sua essencialidade para a defesa do que somos como nação e pela necessidade de representarem um entendimento mínimo comum a todas as franjas da sociedade.

No entanto, a ação política pode e deve ser conduzida nestas áreas do Estado. Deve é ser conduzida com especial cuidado no sentido de salvaguardar a imagem e a integridade destas instituições e os interesses que visam proteger, o que aconselha a que a ação política seja feita procurando entendimentos, com diálogo e seriedade.

No que se passou na semana passada terá faltado de tudo isso um pouco.

O atual momento político, e o atrito existente entre Presidente e Governo, não justificam nem podem justificar o que se passou. Ambos os órgãos saem severamente manchados desta situação, independentemente dos graus de responsabilidade pela mesma.

Também a Armada saiu severamente afetada, pois apesar de o conceito corporativo ter prevalecido tal foi, na sua verdadeira aceção, uma vitória de Pirro.

O que se terá passado no seio da Armada, na reunião do Conselho Superior da Armada, a ser verdade o que veio a público, não só é grave como, pessoalmente, me custou a acreditar. Supostamente, o Conselho, chamado a pronunciar-se sobre o perfil de um vice-almirante para o cargo de Chefe do Estado-Maior, não só não o terá feito, como teria decidido, contra a intenção do Governo, analisar a saída do atual Chefe do Estado-Maior, tendo ainda, por unanimidade dos seus seis almirantes, emitido um parecer contrário à mesma. Algumas fontes referem, também, que o próprio almirante chefe do Estado-Maior teria votado nesta questão em que ele próprio era visado.

A ser verdade este relato dos factos, esta situação insólita reveste-se de especial gravidade pois o Presidente da República não poderia desconhecê-la, o que confere um outro juízo de valor à sua decisão.

Custa-me particularmente a acreditar que o Chefe do Estado-Maior aceitasse uma situação destas. Conhecendo a intenção do Governo, mesmo que esta fosse injustificada ou com uma justificação subjetiva, participar numa tentativa de resistência à mesma e não optar por sair com a galhardia que uma carreira bem-sucedida ao serviço do país lhe permitia. É algo que me escapa.

Sempre existiu latente nas Forças Armadas, em geral, e na Armada, em particular, um corporativismo que tem, por um lado, razões históricas aceitáveis, por outro, um conceito de sobreposição de uma pseudolegitimidade para se posicionarem acima do poder político, em particular do Governo, colocando no Presidente da República, como seu Comandante Supremo nos termos constitucionais, uma aura quase régia de dependência direta.

Essa segunda visão tem de ser severamente combatida num estado democrático de direito, pois coloca em causa a própria razão de ser destas Forças Armadas. O regime constitucional vigente, de natureza semipresidencialista, coloca as Forças Armadas, como todos os órgãos do Estado, na dependência do Governo da República atribuindo ao Presidente um papel reforçado, relativamente a outras áreas da governação, nesta matéria.

Compete ao Governo propor a exoneração de qualquer dos chefes do Estado-Maior dos ramos e do próprio Chefe do Estado-Maior General e compete ao Presidente exonerar. É o exercício desta divisão de responsabilidades que deve ser feito com especial cuidado, discrição, procurando entendimentos, com diálogo e seriedade.

Foi provavelmente esta visão corporativa que impediu que o necessário espírito reformista, fundamental para a adaptação a novos tempos, aos recursos disponíveis e aos desafios colocados à segurança nacional, se desenvolvesse como parte do pensamento estratégico, no seio das Forças Armadas.

Todo este processo, não tendo contribuído para o enobrecimento das instituições do Estado, teve ainda o condão de colocar em cheque indivíduos com um percurso de serviço público exemplar e trouxe ao de cima um comportamento inaceitável para a condição militar e para o conceito de oficial e cavalheiro que muitos tanto prezam. Foi, neste sentido, também, chocante ver como respeitabilíssimos oficiais generais na reserva, por alguns dos quais tenho elevada consideração pessoal, intervieram na substância e na forma deste processo.