Foi no final do mês de novembro de 1910 que uma centena e meia de mulheres se manifestou em frente ao Parlamento inglês para exigir o direito ao voto, naquela que ficou conhecida por Black Friday. Era o chamado movimento das sufragistas, que viria a endurecer a luta até que as primeiras mulheres – já em tempo de guerra – tivessem autorização para votar. Em Portugal, não fosse a exceção de Carolina Beatriz Ângelo e poderíamos dizer que o voto só viria a ser integralmente concedido às mulheres no pós-25 de Abril de 1974.

Todo este preâmbulo serve para expor um certo nível de indignação com o mundo, este mundo de consumo desenfreado – on ou offline –, onde fundamental é comprar, vender, fazer a economia ‘crescer’ e amontoar um conjunto de bens, muitas vezes, desnecessários. Mas, mais do que isso, quero alertar para o apagamento global deste período da luta pelos direitos das mulheres.

Estaremos a esquecer? Neste período, sim. E é tão grave o que estamos a fazer. Porquê? Porque ser mulher, em Portugal e no mundo, continua a ser um desafio diário, porque ser mulher continua a ser sinónimo de desigualdade, porque ser mulher continua a ser uma odisseia, especialmente quando a mulher é ou quer ser líder; porque continuamos numa sociedade que tende a silenciar a voz pública da mulher e a descredibilizá-la quando a tem. Em suma, porque continuamos numa sociedade que inferioriza a mulher por ser isso mesmo: mulher.

Basta lembrar o escrutínio humilhante pelo qual mulheres com responsabilidades políticas, em Portugal, têm passado. Antes de qualquer acusação de exagero, aconselho vivamente a lerem em comentários das redes sociais considerações sobre personalidades como Constança Urbano de Sousa, Assunção Cristas, Joacine Katar Moreira, Catarina Martins, Graça Freitas, Marta Temido ou Graça Fonseca. Não se trata, é claro, de avaliar o trabalho ou a competência das políticas aqui referidas, mas sim, de condenar as estratégias nefastas que são aplicadas para diminuir, descredibilizar e vilipendiar a imagem pública delas.

Ou ainda o processo de trituração intelectual e de caráter pelo qual passam mulheres que querem ser líderes num campo de domínio masculino: Marie Benedict diz que é o caminho árduo da única mulher na sala, Camille Paglia refere-se à necessidade que os homens têm de sentir poder sobre as mulheres e Mary Wollstonecraft condenava o teimoso hábito de os homens tratarem as mulheres ou como escravas ou como jarros de flores não pensantes.

É claro que qualquer generalização pode ser enganosa; contudo, não posso deixar de exprimir o meu desagrado e até repulsa quando leio o que leio no mundo, muitas vezes autenticamente vil, das redes sociais, onde os filtros da cordialidade e da boa educação se esfumam, a misoginia e o sexismo (e a xenofobia e o racismo) se mostram protagonistas e as frustrações são vomitadas a todo o momento neste lixo que são, em grande parte, os conteúdos dos denominados média “sociais”.

Quando dantes ouvíamos no café que aquela pessoa é isto e aquilo, num comentário sem fundamento e entre uma cerveja e outra, pensávamos que ou era do álcool ou um caso de imbecilidade isolado. Quando hoje olhamos para os espaços digitais que, além de destruírem a língua portuguesa e outras, destroem pessoas, especialmente, mulheres públicas, percebemos que a imbecilidade, afinal, arrisca-se a ser, também ela, pandémica.

Mas de volta à Black Friday – a libertadora, não a consumista. Será, talvez, bom lembrar que a expressão veio de um dia de grande violência sobre as mulheres, de luta pelos seus/nossos direitos. Direitos esses que não devem ser dados ou tidos como adquiridos. Àquela sexta-feira negra devemos a possibilidade de poder decidir e avaliar, entre muitas outras coisas, os líderes públicos.

Se é necessário continuar a lembrar que a luta pelos direitos das mulheres, e toda a luta pelos direitos humanos, deve continuar? Sim. E não é com a Black Friday dos shoppings ou das compras online. É com o respeito pela origem da expressão, é com o apoio e legitimação do percurso de ascensão das mulheres com voz pública. É com a reprovação veemente de expressões como: “Não voto nela porque é mulher”, “Não confio nela porque é mulher” ou “Não estavam preparados para uma mulher”.

Alterar o mind-set passa por alterar a nossa relação com a memória, com a luta pelos direitos humanos, pela procura incessante por um mundo mais justo e mais equitativo.

Entre a sexta-feira negra do movimento das sufragistas – libertadora – e a sexta-feira negra do pós-Ação de Graças – consumista –, eu escolho a primeira. Porque, ao contrário das minhas avós e da minha mãe, eu já nasci num país democrático. Elas tiveram que lutar para se fazer ouvir. Por elas, pelas sufragistas e por todas as mulheres que lutam pela igualdade de género e por elevar a sua voz a um público cada vez mais vasto, eu quero lembrar-me da Black Friday libertadora.

Eu não vou esquecer. E não sou a única mulher na sala!