Eduardo Lourenço deixou-nos. Com uma idade avançada e uma vida extraordinária, só podemos celebrar a sua passagem entre nós e respeitar a sua memória. Foi dos mais brilhantes a pensar a portugalidade, o nosso lugar e vocação no mundo. Deixa uma obra vasta, entre livros e conferências, essenciais para quem quer perceber o que somos e para onde podemos ir.

Não digo que tenha deixado um legado de verdades absolutas, mas foi sempre suficientemente profundo e rigoroso para que mereça ser levado a sério. Do seu calibre, fica-nos apenas Adriano Moreira, outra referência do pensamento estruturado, sério e rigoroso; outra visão consequente da portugalidade.

Quem segue a vida francesa, inglesa, italiana ou espanhola, pode facilmente pensar num punhado de nomes que sejam referências do pensamento e cultura desses países, com presença habitual no espaço público. Aliás, o espaço público reserva uma área para o debate, a polémica, a reflexão sobre a nação, ou nações. Os alemães fazem-no com igual profusão e qualidade, mas talvez menos acessibilidade e “democraticidade”; a academia estuda o povo, mas não o procura com entusiasmo. Esta constatação de realidades que nos são muito próximas, há muito que me deixa com uma enorme preocupação, e a partida de Eduardo Lourenço é um bom pretexto para voltar ao tema.

A aridez de pensamento estruturado sobre Portugal e a Portugalidade é absolutamente assustadora. A forma como lentamente repelimos a cultura e a intelectualidade do espaço público, desvalorizando-as, condena-as e condena-nos.

O desprezo a que votamos a literatura, a história e a filosofia condiciona o modo como vemos a política e a sociologia, e a forma como actuamos na economia. Sim, a prioridade deveria ser esta, primeiro o saber, a sua consolidação, e depois a acção. O contrário, a subordinação de tudo o resto à economia, é o roteiro para uma nação sem alma.

Tive o cuidado de ir ver em que época o Mário Viegas ou a Natália Correia desapareceram do pequeno ecrã, e reparo que à medida que o betão nos inundava, pago com dinheiro “fácil” da CEE, se ia esfumando o rasto da cultura que ainda persistia no espaço público. O Portugal do betão, do dinheiro fácil e reluzente, sepultou o Portugal que insistia em pensar. A intelectualidade que existia recolheu a casa, tinha perdido o vigor que a ditadura estimulara, não teve o cuidado de estimular a geração seguinte, desistiu do país e definhou. A política do ensino tratou do resto.

Este ponto de viragem, que se materializa com a morte de Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa e o início do declínio político de Soares, marca o divórcio entre política e cultura. A nova classe política, chegada ao poder a meio dos anos oitenta, ocupa o espaço, toma conta de tudo e vê o país como uma grande oportunidade de negócio.

A cultura, nas suas mais diversas formas, entra na coluna dos custos a evitar no balancete da nova ordem. O empreendedorismo era a cura para doenças como a literatura ou a filosofia. O novo mármore polido faria esquecer o calcário corroído dos Jerónimos. Uma viatura espampanante abafaria qualquer doutoramento em filologia. Uma sala resplandecente na “Olá” ou na “Caras”, passou a fazer o contraste com a privacidade de uma biblioteca. Um atendimento dedicado na banca passou a valer mais do que um gabinete na universidade. Alguém chamou a isto o Portugal de sucesso.

A política viu-se gradualmente povoada por uma nova casta. Gente como Jaime Gama, Vasco Graça Moura ou Raul Miguel Rosado Fernandes eram cada vez mais uma flor na lapela de um regime com má consciência. O caminho não tinha retorno.

Tenho a profunda convicção de que a mais profunda das razões do nosso atraso estrutural é cultural. É a mais pesada herança que Salazar nos deixou; a visão antropopessimista de um povo que se quer manso, pouco instruído e ainda menos culto. Aquela coisa do “pobres, mas honrados”, a morte dos horizontes mais vastos. Uma factura que pagamos até hoje. Mas, ainda assim, Salazar teve uma ideia de portugalidade e de cultura, permitiu elites, deixou que se difundisse conhecimento, arte e pensamento, apesar da censura. Por outro lado, a repressão, como mola estimulante, fez o resto. Tendo o povo ficado na penumbra, havia, ainda assim, uma elite razoavelmente interessante e numerosa. A tal que não se soube renovar e superar o teste do betão.

Fica-nos esta desolação. A orfandade de Lourenço e Agostinho, a ânsia pelas palavras de Adriano e os olhos postos em António Barreto, Jaime Nogueira Pinto ou José Gil. Uma enorme e assustadora aridez. Sim, assusta que não haja sobressalto no país em que se trata Boaventura Sousa Santos como um pensador.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.