“Quem vê o seu povo, vê o mundo todo”

– Eduardo Lourenço, tendo aprendido duma sua tia.

Estamos nas Presidenciais 2021 e, após quase dois meses do seu falecimento, recordo, saudoso, Eduardo Lourenço e os seus ensaios políticos em “A Esquerda na encruzilhada ou fora da História?” (Ed. Gradiva), que aqui explano. Como que um tributo ao insigne pensador. Continuando o exercício do pensamento, conforme ele nos ensinou e cujo legado nos deixou.

Para Eduardo Lourenço, a versão socialista é “um projecto liberal que não se limita apenas ao exemplo – talvez não muito probante para os europeus”. E considera que tal é o nosso presente: “por ser como é impõe à cultura do Socialismo ou mesmo ao Socialismo como cultura uma exigência de quixotismo para imaginar uma contra-resposta adequada e um futuro bem mais audacioso”. E este futuro passa, conforme concorda, pela resposta dialogante no pensar e modus pensandi deste mundo, na sua “existência ultracapitalista”.

Logo, desafia a que o Socialismo prioritariamente reinvente um novo discurso cultural e reveja o seu fascínio pelo discurso pseudoliberal. Remata, e bem: “o Socialismo não é uma religião”. Ou já não é, se para certos cidadãos alguma vez foi. Nem “já não é a versão laica, humanizante ou imanente, de uma visão englobante da História, do seu processo, do seu mistério e da solução dele”, afiança o autor. Daí que, no contexto histórico-cultural do Socialismo, ele seja na sua ideia “uma crítica da religião”.

Houve quem compreendesse, no século XIX, que “a religião como ideologia-suporte da sociedade ocidental não podia ser superada por simples denegação crítica, do tipo racional”. Ora, o socialismo português – e o republicanismo generalista – “nasceu ultracristão, profundamente idealista”, entendendo-o sob um “modo moralista”.

Eduardo Lourenço considera que a Esquerda europeia está “numa situação particularmente melindrosa”, por ter pensado que “os erros ou pecados políticos, sociais e económicos só podiam ser cometidos pela Direita”. E questiona se a Esquerda democrática é efetivamente “uma mera ilusão consoladora, um mito sem viabilidade histórica”. Admite, portanto, que “o que está em causa nem é sequer o Socialismo como utopia ou perspectiva mais ou menos irrealista”, mas a crise em si que é “a ideia mesma do Socialismo”.

Mais adiante clarifica o que separa a Direita da Esquerda: “a Direita é uma realidade sociológica, uma expressão histórica e política da humanidade que não se pode realmente pensar sem pôr em causa os fundamentos da sua boa consciência e da sua legitimidade”. Por isso, “o único inimigo que a Esquerda tem, nas suas diversas modalidades, é ela mesma enquanto inconsequente” e “esquecimento da sua própria aventura”.

Tenhamos atenção aos perigos – e alerta Eduardo Lourenço para alguns neste seu livro –, como o “fim da Política”, suspeição nascida precisamente em sociedades hiperdemocráticas. E tal pode suceder-se da “situação de divórcio espectacular entre o cidadão e a classe política, considerada como não representativa ou mesmo nociva”, até para gerar resposta a uma “metamorfose civilizacional e cultural de fundo” premente.

Outros perigos são o “hiperpoliticismo” e a estranha transformação do individualismo, já que – para o autor – a “sociedade solidária foi sempre o ponto de fuga da utopia socialista”.

Concluindo, lamento que com o atual ato eleitoral decorrente em Portugal, o Governo e o Parlamento tenham sido ‘formiga’ e não ‘cigarra’, ao não se terem precavido antes no acerto corretivo à Constituição, integrando-se no sistema os votos eletrónico e por correspondência.

Por que esperamos? Salvaguardava-se a pandemia – não fazendo aumentar mais as exceções do confinamento desconfinado –, combatia-se a sempre vencedora abstenção (sendo ignorada) e cumpria-se, também assim, um desejo expresso de Eduardo Lourenço: “é vital que a Democracia tenha a lucidez e a coragem de assumir, sem masoquismos suicidários, a sua excepção como regra”!