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A ponte debaixo do alcatrão

Já nem é certo que estejamos todos destinados a ficar sete palmos debaixo da terra, pois o novo costume da cremação evita que fiquemos com os ossos confinados à caixa de madeira que arqueólogos de um futuro distante virão a estudar com a curiosidade de quem hoje escava necrotérios pré-históricos. Em cinzas ou em ossos […]
1 Setembro 2019, 19h01

Já nem é certo que estejamos todos destinados a ficar sete palmos debaixo da terra, pois o novo costume da cremação evita que fiquemos com os ossos confinados à caixa de madeira que arqueólogos de um futuro distante virão a estudar com a curiosidade de quem hoje escava necrotérios pré-históricos.

Em cinzas ou em ossos teremos deixado a marca possível, medida em filhos, árvores e livros, desvalorizados em tempos de baixa natalidade, incessantes incêndios florestais e galopante erosão da leitura. Havendo quem tenha explicado, melhor do que ninguém, que escrever versos é tão inútil quanto fazer tabuletas, nada mais resta além de sair do comboio na estação terminal e seguir por entre o cardume de gente a caminho do cruzamento em que o silêncio é fustigado pela insistência do apelo à “moedinha” de uma desgraçada que optou por perder o jogo por falta de comparência.

Já com a estação de comboios pelas costas, de olhos postos no ecrã pequeno que se enche de palavras nos tempos livres de servir de telefone e de janela para o mundo, enquanto aguardo que o semáforo decida ficar verde, resta-me a travessa e reconfortante convicção de que serei o único a conhecer um segredo tão inacreditável quanto impossível de converter em qualquer outro proveito que não o puro e simples conhecimento.

Talvez alguns dos que também acabaram de sair de Alcântara-Terra saibam que a palavra que designa o bairro lisboeta significa “a ponte” em árabe. Já menos provável será que algum desconfie que os mouros não tinham dotes adivinhatórios suficientes para preverem que um ditador beirão contrataria, tantos séculos mais tarde, uma empresa do mundo que viria a revelar-se novo para construir a enorme ponte que domina o horizonte e liga as duas margens do Tejo.

A ponte que deu nome ao bairro era mais modesta, limitando-se a permitir a travessia da Ribeira de Alcântara, um dos muitos mais de sete rios que Lisboa domou como feras de circo. E se hoje o curso de água está canalizado, escondido debaixo da terra a correr para o Tejo, teve durante séculos caudal para justificar uma ponte que romanos, mouros e lusitanos aperfeiçoaram ao sabor das suas eras, tendo entrado para a História de Portugal quando ali foram derrotadas as forças de D. António, prior do Crato, neto bastardo de D. Manuel I, sobrevivente da batalha de Alcácer-Quibir que à custa de muito engenho e arte reduziu o resgate a pagar aos captores. Posto em fuga pela rua que agora tem o seu nome, restou-lhe zarpar para os Açores enquanto as tropas do duque de Alba atravessaram a ribeira e tomaram conta de Lisboa, dando início a 60 anos filipinos.

Alheia a questões de soberania ali ficou a ponte, com o tabuleiro acrescentado em nome do progresso que fez aparecer terra conquistado ao rio à frente, um imponente aqueduto ao fundo e uma linha de caminho de ferro ao lado. Ainda chegou a ter, à distância de menos de dois séculos, estatuto de fronteira fiscal entre os municípios de Lisboa e de Belém. Ali ficou até ser decidido em reunião camarária que a ribeira seria encanada, desaparecendo dos olhos que só veem o que aparece à superfície.

O arco da ponte que deu nome ao bairro, mais ou menos constante e imune aos pés e rodas que a atravessaram, poderia ter sido destruído. Em vez disso, após serem retiradas peças expostas em museus, entenderam por bem soterrá-lo, decerto com muito mais do que os sete palmos de terra que todos tínhamos à espera antes dos crematórios.

À vista ficou o alcatrão, atravessado a cada instante por automóveis, autocarros, turistas aventureiros, necessitados de substâncias tóxicas degustadas junto ao túnel ferroviário e, acima de tudo, gente trabalhadora e cheia de pressa para chegar a algum lado, sem dar conta – e se desse, que diferença faria? – de que debaixo dos seus pés subsiste aquilo que foi uma ribeira e aquilo que foi uma ponte, tal como tudo aquilo que nos rodeia será, mais tarde ou mais cedo, algo que um dia foi qualquer coisa.

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