O pensamento político conservador perdeu recentemente, a 12 de Janeiro, um dos seus mais sólidos e coerentes expoentes. O legado que Sir Roger Vernon Scruton (1944-2020) nos deixou é vastíssimo (mais de 50 livros) e é constituído também por numerosas intervenções sobre temas tão diferentes como Ópera, Arquitectura, Estética e História, para além, naturalmente, de Filosofia e Política.

Muitos dos seus livros não foram bem recebidos, nem compreendidos, basta relembrar a polémica sobre a obra “Thinkers of the New Left” (1985), na qual Scruton dedica catorze capítulos a igual número de pensadores da Nova Esquerda britânica. Este livro seria republicado 30 anos depois como “Fools, Frauds and Firebrands” (2015). E ainda gerou mais polémica.

Ler Scruton é um singular passeio cósmico, infindável e introspectivo, pela afirmação da cultura ocidental, do conservadorismo inglês, da defesa da escola pública, pela integração de imigrantes, pela ecologia (foi talvez um dos primeiros pensadores conservadores a resgatar o tema para a Direita).

As suas memórias (“Gentle Regrets”, 2006) são uma viagem ambivalente aos seus dois semi-heterónimos: Roger e Vernon. No primeiro caso, temos o homem público, interventivo, que tem uma palavra a dizer sobre o mundo. Com Vernon, temos o Scruton mais natural, mais literário.

No essencial, temos os semi-heterónimos à procura de sentido, de uma ordem natural, talvez seja essa viagem profunda ao seu “eu”, à sua procura interior, à sua forma de ver o mundo que marcará certamente a sua viagem literária e filosófica da procura de sentido, axial a toda a obra de Scruton, da procura de razão e ligações, que marcará toda a sua vida.

Scruton teve ainda uma longa carreira como professor universitário, tendo leccionado durante mais de duas décadas no Birkbeck College, da Universidade de Londres e também em Princeton, Boston e Stanford.

Scruton “viajou” prodigiosamente por Kant, Espinosa, Descartes, Wittgenstein, Wagner e conseguiu fazer ligações entre quase tudo e quase todos. Acima de tudo, como conservador, Scruton defendeu a civilização ocidental e uma ordem natural universal que procurou explicar e estruturar, criando uma linha única de conservadorismo, como que um fork analítico, alicerçado numa deriva de Oakeshott, da desconfiança, do cepticismo perante o novo e da hiperbolização da prudência que vinha de Burke.

Nos intervalos e durante décadas, conseguiu irritar a Esquerda britânica, que jamais teve argumentos com a densidade e fundamentação inultrapassável que Scruton colocava em tudo o que escrevia.

Em 2017, publicou um livro sobre uma ópera de Wagner (“The Ring of Truth”), e como era de esperar, Scruton “dissecou”, como mais ninguém o saberia fazer, a influência de Hegel e Schopenhauer em Wagner e abordou de forma única a profundidade e o simbolismo do drama operático, a que dedicou mais de 400 páginas. Entregue em versão quase final, ao editor, ainda ficou um livro sobre uma outra ópera de Wagner, “Parsifal”.

Em Novembro de 2019, Scruton recebeu, muito merecidamente, uma medalha do Parlamento checo, pelo seu contributo para a Revolução de Veludo. Dificilmente poderemos imaginar melhor homenagem para quem se dedicou a pensar e a tomar partido sobre o que o rodeava, sem medo. São conhecidas as suas ligações a intelectuais dissidentes da ex-Checoslováquia comunista. Scruton sabia que um livro era uma “arma” e nesse sentido ajudou e deu muitas “armas” a quem delas precisava, no tempo certo.

Scruton foi muito mais que um filósofo conservador ou um académico, foi um génio, um homem do seu tempo, de uma direita assumida, conservadora, tolerante e decente. Na despedida, o primeiro-ministro inglês, Boris Johnson, disse, via Twitter, a 13 de Janeiro: “Perdemos o maior pensador conservador moderno – que não apenas teve a coragem de dizer o que pensava, mas o disse lindamente”. Não posso estar mais de acordo.

Muitos lamentaram e escreveram, recentemente, sobre a partida de Sir Scruton. Pelo vasto legado que nos deixou, a viagem pela descoberta do seu pensamento, manifestamente, não acabou. E talvez nunca acabe. Para muitos outros, talvez tenha agora começado.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.