Rafael Mora, o outrora todo-poderoso administrador da Ongoing, foi esta semana ao Parlamento para se explicar na comissão parlamentar de inquérito às perdas do Novo Banco. Mora passou as culpas para o ex-sócio Nuno Vasconcelos, alegando que se afastou do grupo no final de 2014, devido ao “desnorte” da gestão. Com a astúcia e o sentido de humor que lhe são característicos, Rafael Mora admitiu que tal decisão lhe terá valido a imagem de um rato a abandonar um navio a afundar, mas justificou-se dizendo que é católico e que “o suicídio não faz parte da prática”.

Antes de prosseguir, uma declaração de interesses: fui jornalista do extinto “Diário Económico”, detido pela Ongoing, sendo também um entre muitas dezenas de ex-funcionários que, cinco anos depois, têm ainda indemnizações a haver que jamais serão vistas, porque, como Nuno Vasconcelos garante a partir do seu exílio em terras de Vera Cruz, o mesmo “não tem dívidas”. Mas estas circunstâncias pessoais – que aqui exponho por dever de transparência para com os leitores – não condicionam o teor deste artigo.

Na sua audição, Rafael Mora contou que em 2014 (já depois do colapso do BES, que era o grande financiador da Ongoing) se incompatibilizou com Nuno Vasconcelos e argumentou que não tomou parte nas decisões que afundaram o grupo, que era dono de participações acionistas relevantes em empresas como a antiga PT e a Impresa. O gestor espanhol atribuiu a falência da Ongoing a vários “erros” cometidos por Vasconcelos, como a sua luta com Francisco Pinto Balsemão pelo controlo da Impresa, algumas contratações que realizou e a forma como lidou com o colapso do BES e o surgimento do Novo Banco, negando-se a tomar as medidas necessárias para reduzir o elevado endividamento do grupo numa altura em que o desastre era já previsível.

Rafael Mora pode estar certo em muitas destas considerações. Porém, nos anos em que esteve na empresa, sobretudo no tempo em que havia dinheiro a rodos emprestado pelo BES e dividendos milionários da PT, era por muitos visto como o verdadeiro poder por detrás do trono, incluindo pelos adversários e críticos da Ongoing. Justa ou injustamente, Mora era considerado o principal arquiteto de um ambicioso projeto de poder que começara anos antes, na consultora Heidricks & Struggles, e que teria ramificações em várias das principais empresas do PSI20, como as referidas PT e Impresa, a EDP e o BCP.

Esta perceção quase generalizada do gestor como o homem forte da Ongoing poderá, evidentemente, não corresponder inteiramente à verdade. Talvez Nuno Vasconcelos tivesse afinal mais poder do que o alegado poder que estaria por detrás do (seu) trono. Talvez o trono nem fosse seu e tanto Vasconcelos como Mora fossem meros instrumentos de terceiros. Ou talvez tenha sido um pouco disto tudo e a responsabilidade pelo colapso da Ongoing, pelo fim do “Diário Económico” e por todos os prejuízos causados a trabalhadores, credores e contribuintes seja partilhada por Vasconcelos, Mora e quem lhes colocou nas mãos mais de mil milhões de euros para tentar controlar meios de comunicação e importantes centros de decisão da economia nacional, no âmbito de uma estratégia mais abrangente que, durante anos, contou com a bênção ou mesmo a cumplicidade do poder político.

Napoleão dizia que a História é um mito no qual os homens concordam em acreditar. Mora, que não sendo corso tem o seu quê de estratega, terá alimentado o mito à sua volta enquanto tal lhe foi conveniente, para a partir de certa altura tentar passar a imagem contrária. Aparentemente, o seu ‘catolicismo’ é do tipo festivo, que celebra a Ressurreição e o Pentecostes, não a culpa e a penitência. Não sabemos se Vasconcelos também se considera “católico”, mas não consta que esteja a expiar pecados lá pelas terras do samba.