A) A grotesca prática de partilha de dados pessoais às embaixadas de estados estrangeiros colocou a Câmara de Lisboa num nível inaudito de violação continuada de regras legais europeias e nacionais.

Este acontecimento é surpreendente.

Antes de mais, espanta a total indiferença perante o quadro regulatório europeu e perante os perigos que este quadro visa acautelar.

Surpreende, claro, a ausência de assunção da responsabilidade política relativamente a um comportamento reiterado desta gravidade, que pode ter colocado em risco a vida, a integridade física e outros direitos de manifestantes ou das suas famílias.

Mais: esta gritante infração ao Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) e à respetiva lei portuguesa de execução não ocorreu num pequeno município do interior, debatendo-se com insuficiência de meios financeiros e humanos, mas na Câmara da capital do país.

Claro que nem deveria ser necessário conhecer os diplomas legais em causa para evitar uma prática tão evidentemente absurda e contrária ao simples bom senso. Todavia, na ausência de senso comum, o conhecimento e a observância do direito da União Europeia – neste caso, do famoso RGPD – teria sido certamente suficiente.

B) Sabemos que uma das prioridades centrais da atual Comissão Europeia é preparar a União Europeia para a era digital. Esta estratégia, secundada pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, passa por um ambicioso plano dirigido a fazer acompanhar a transição digital de uma revolução jurídico-legislativa que coloque a transição digital ao serviço das pessoas e das empresas europeias, que limite os riscos e potencie o desenvolvimento económico e social.

Esta verdadeira revolução do direito digital tem como pilares não apenas o já referido RGPD, baluarte da proteção de dados pessoais, mas também um conjunto alargado de iniciativas legislativas que deverão ser aprovadas nos próximos anos, entre as quais destaco:

  1. O Regulamento sobre Inteligência Artificial (IA), que disciplina os diferentes usos destas tecnologias, em função do grau de risco que acarretam, bem como o Regulamento sobre o regime da Responsabilidade Civil emergente do uso da IA;
  2. O Regulamento sobre os Mercados Digitais (Digital Markets Act), visando estabelecer regras relativas às cada vez mais omnipresentes e poderosas plataformas digitais;
  3. O Regulamento sobre os Serviços Digitais (Digital Services Act), tendo como objetivo principal criar um ambiente seguro e de confiança na prestação de serviços da economia digital;
  4. O Regulamento sobre a Privacidade Eletrónica (E-Privacy Regulation), que substituirá a Diretiva E-Privacy para proteção dos dados pessoais nas comunicações eletrónicas;
  5. O Regulamento dos Dados (Data Act) e o Regulamento sobre a Governação Europeia dos Dados (Data Governance Act), que visam promover o uso e a transferência de dados, especialmente num contexto profissional, e tendo especialmente em conta que o desenvolvimento económico depende cada vez mais da disponibilidade pelas empresas de dados não pessoais.

Às iniciativas legislativas referidas somam-se muitas outras, como as relativas à identidade digital europeia, à cibersegurança, à regulação dos mercados de criptoativos (MiCA) e às formas alternativas de financiamento, ou ao blockchain e às DLTs.

C) Concluo este artigo com uma chamada de atenção.

Portugal não pode continuar em grande medida distante desta revolução do direito digital, dos debates que ela suscita, e do seu enorme impacto. As instituições públicas – como a Câmara de Lisboa ­–, as empresas e os indivíduos devem estar cientes de que o futuro de todos depende da Europa. A Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, que terminou em junho, pode ter contribuído para um maior conhecimento destas matérias pelo público em geral.

Se queremos uma modernizar a nossa economia, potenciar a criação de riqueza e fomentar oportunidades para as pessoas e as empresas, a agenda digital europeia tem de estar no centro das nossas atenções.