Há dois séculos quando a galera portuguesa, Correio da Ásia, embateu numa barreira de recife, ao largo da costa noroeste da Austrália e naufragou com cerca de três toneladas de moedas de prata, nada fazia prever este desfecho. O indício único da catástrofe foi o avistamento da rebentação das ondas. As histórias de naufrágios são fascinantes pelas suas múltiplas dimensões e pela pergunta que subjaz a quase todos eles: poderia ter sido evitado? Olhando para a Europa há tempestade no horizonte e poderá ser de violência pouco usual, por comparação com aquelas que, com frequência, se abatem na costa de Bruxelas.

“Daqui a dois anos a moeda única poderá ser passado”, este é pelo menos o cenário pessimista traçado pelo analista político Martin Höpner do Instituto Max Planck, referindo-se à sentença emanada pelos juízes de Karlsruhe, onde se considera que o BCE excede o seu mandato com as compras de dívida que tem realizado, e se exige à autoridade monetária explicações no prazo de três meses, caso contrário o Bundesbank teria de deixar de participar no programa de compras. Alega-se que com o Public Sector Purchase Programme (PSPP) o BCE violou não apenas os Tratados como a própria Lei Fundamental alemã.

O debate académico em torno do ultra vires não é novo na Alemanha, porém este o acórdão do Tribunal Constitucional é para alguns especialistas em direito europeu, como o alemão Franz Mayer, da Universidade de Bielefeld, “uma declaração de guerra” ao Tribunal Europeu. Tem Frankfurt o dever de prestar explicações? O Banco Central Europeu é, por boas razões, independente. Aliás, essa foi uma exigência alemã durante as negociações do Tratado de Maastricht, de forma a garantir a estabilidade dos preços mesmo contra a vontade dos governos. Se a instituição chefiada por Christine Lagarde responder às questões dos juízes estaria de alguma forma a reconhecer a competência do Tribunal Constitucional alemão para questionar o Tribunal Europeu, uma vez que este reconheceu a bondade do programa de compra de dívida, se não responder às aclarações pedidas coloca o governo alemão numa posição muito complicada.

“A última palavra no que diz respeito à lei da UE é sempre dita no Luxemburgo. Em mais lado nenhum”, frisou Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia (CE). Ursula Von der Leyen, está também ela numa situação delicada: a abertura de um procedimento contra a Alemanha calaria vozes críticas que sustentam que Bruxelas é rápida a agir contra os governos recalcitrantes da Polónia e da Hungria – países onde muitos esfregaram as mãos de contentamento com uma sentença onde aparentemente se dita que as decisões do Tribunal Europeu não são para cumprir –, mas que teme atuar contra a Alemanha. Sendo cidadã alemã fica mais exposta a essa acusação.

Com a presidência alemã da UE no horizonte já a 1 de julho, Angela Merkel optou pela serenidade na resposta. Não podendo confrontar diretamente Karlsruhe, dirigiu-se ao Bundestag dizendo que importa reagir a esta decisão com uma “bússola política clara” para assegurar que o euro seja uma moeda comum forte e perene. A troca do marco alemão pela moeda única assentou nesta premissa de estabilidade. “Não nos devemos esquecer que [o antigo presidente da CE] Jacques Delors disse antes da introdução do euro: é necessária uma união política, uma união monetária não é suficiente”. Este era o objetivo da zona euro desde a sua génese, contudo, de acordo com a chanceler, não se avançou o suficiente. O movimento de Merkel no sentido de uma maior integração europeia é uma boa notícia para a França e para o plano de relançamento económico da União Europeia. No Eliseu interpretam-se as palavras da chanceler como fraturantes: elas mostram não apenas o europeísmo da Alemanha, mas que a sua resposta à atual crise não será apenas monetária.

O que as histórias de naufrágios também nos ensinam é que um bom capitão pode salvar não apenas o navio, como a tripulação. Tenha Merkel boa mão e bons ventos.