A Turquia, país euro-asiático, permanece um enigma para a maioria dos cidadãos europeus. Muitos até desconhecerão o longo processo negocial, encetado há décadas, para que a Turquia se torne Estado-membro da União Europeia, então Comunidade Económica Europeia.

Nestes dias mais agitados, chegam relatos das eleições turcas. Os escrutínios eleitorais são dois, embora isso nem sempre seja claro nos relatos que nos chegam. Assim, disputaram-se no passado domingo eleições presidenciais e legislativas, que ditaram sortes diferentes ao partido no poder. O ainda presidente Erdogan terá de enfrentar uma segunda volta eleitoral. No plano legislativo, o partido do presidente, a Aliança Popular, venceu novamente as eleições com maioria absoluta.

Portanto, por via legislativa, o poder de Erdogan não sofre qualquer contrariedade. A única incógnita é o que se segue e qual será o resultado das eleições legislativas. Contudo, não tendo obtido mais votos que Erdogan, como poderá Kemal Kiliçdaroglu convencer o eleitorado indeciso a apostar na sua eleição?

Mesmo conseguindo atrair os votos dos eleitores que votaram no terceiro candidato, levantam-se mais duas incógnitas na difícil equação de uma eventual eleição. Como atrair votantes e promover um contexto de mudança, tendo no parlamento uma maioria absoluta do partido do candidato concorrente? Irá a população turca arriscar um potencial de instabilidade tão alto?

Apesar das eleições se terem realizado num contexto que poderia parecer desfavorável ao Presidente Erdogan, na verdade ele foi bem-sucedido na primeira volta. Conseguiu este feito na sequência de uma taxa de inflação alta, de terramotos devastadores e de uma performance económica muito abaixo dos primeiros anos do seu governo. Contudo, não foi o suficiente para assegurar a vitória nas eleições.

Confrontado com uma segunda volta, Erdogan tem a seu favor a maioria absoluta no parlamento e uma construção política discursiva de vinte anos.

Num contexto nacional difícil e numa situação internacional complexa, da qual a Turquia reconhece ser parte de uma tentativa de estabilização, qual o impacto que podemos esperar destas eleições? Decerto, algo que irá para além das fronteiras turcas.

A história de uma contenda eleitoral

No dia 14 de maio de 2023, apresentaram-se a escrutínio popular 24 partidos. Os mais de 60 milhões de eleitores na Turquia podem votar para as eleições legislativas e presidenciais num boletim de voto que tem um metro de comprimento.

Tradicionalmente, com taxas de abstenção baixas, os eleitores turcos poderiam ter mais razões para votar nestas eleições. A situação interna degradou-se, fruto do insuficiente desempenho da economia e dos terríveis acidentes naturais que o país sofreu. O aumento do desemprego jovem e as desigualdades sociais contribuíram para um ambiente social mais tenso e, sobretudo, para um maior desencanto quanto às promessas de Erdogan.

Os candidatos com real possibilidade de vencer as eleições eram Recep Tayyip Erdogan e Kemal Kiliçdaroglu, ambos representando coligações, a primeira de inspiração religiosa (islâmica), a segunda de inspiração secular.

Num país cuja diversidade étnica é assinalável, com a existência de etnias cuja integração política é um desafio, como os Curdos ou os Alevis, o discurso nacionalista tem sido aquele que tem encontrado mais eco junto da população. Os Curdos, etnia transfronteiriça, têm sido ferozmente perseguidos pelo governo de Ancara e despojados de oportunidades de participação política no seu próprio país. Os Alevis, com origem na Anatólia, baseiam parte da sua identidade religiosa num culto religioso islâmico mais permissivo e próximo dos comportamentos ocidentais, em que as mulheres não usam véu e o consumo alcoólico é permitido.

As duas etnias têm sofrido perseguições violentas que incluem massacres. Entre os dois nacionalismos em competição eleitoral, a grande diferença residia na filiação religiosa ou laica, na perspetiva sobre as relações com as minorias étnicas e na forma como encaram as relações com os outros países.

Erdogan, logo após a consolidação do seu poder, introduziu e aprofundou um discurso político baseado na dicotomia entre mundo ocidental, imperialista e opressor, e o mundo islâmico, subjugado e oprimido. É nesta dicotomia que encontra as respostas para os desaires internos no país, nomeadamente, para a fraca performance da economia.

As sanções impostas pelos Estados Unidos da América no que concerne à exportação do alumínio e do aço, em 2019, assentaram na perfeição neste discurso. A estes argumentos são acrescentados outros, como a suposta tentativa de controlar a Turquia através da intervenção do Fundo Monetário Internacional.

Em 2020, a pandemia permitiu um maior controlo sobre a população e foi a partir deste ano que se verificaram as maiores perseguições a intelectuais, incluindo investigadores e professores universitários, a jornalistas e aos dissidentes políticos. Assumidamente assente na religião islâmica e nacionalista, Erdogan defende um estado centralizado, em que o governo se confunde e funde com o Estado e em que as liberdades são controladas por um suposto desígnio nacional superior às liberdades individuais, mas em que o liberalismo económico impera.

Kiliçdaroglu é um herdeiro da tradição kemalista, cujas características essenciais eram o nacionalismo, republicanismo, secularismo e populismo. Durante a campanha assumiu diversas posições que causaram impacto e debate na sociedade turca. Kiliçdaroglu assumiu a sua pertença à minoria étnica Alevi, trazendo para o debate político a questão religiosa e étnica, embora defenda um poder laico. A frontalidade com que assumiu a sua pertença étnica levou Erdogan a reagir e a reafirmar a sua perspetiva islâmica sunita com a qual orienta a sua ação política.

Também foi expressivo quanto à necessidade de uma reforma socioeconómica e política e na vontade de regressar às negociações para a plena adesão da Turquia à União Europeia. Contudo, este líder reformista também levantou a questão dos refugiados sírios no país, defendendo negociações com o líder sírio, Bashar Al-Assad, no sentido de promover o retorno desta população ao país de origem.

A conjuntura internacional

Apesar de membro da Organização do Tratado Atlântico Norte (OTAN) e da pretensão de adesão à União Europeia, até hoje gorada, a Turquia reconhece o seu papel como estado euro-asiático e projeta essa sua bicefalia continental, representada por Istambul e Ancara. As suas boas relações com a Federação Russa ou com a República Popular da China são conhecidas e, ultimamente, até participou enquanto estado observador na Cimeira de alto nível da Organização de Cooperação de Xangai, liderada pela Rússia e pela China, que reúne países como a Índia ou o Paquistão. Qualquer um destes países é essencial para a política externa turca e parte do poder funcional que a Turquia detém na Ordem Internacional.

Essencial para a ligação entre Ocidente e Oriente, Ancara desempenhou muitas vezes o papel de estabilizador de equilíbrio, ora participando nos projetos internacionais ocidentais, ora privilegiando as relações diplomáticas com os países orientais. Erdogan desenvolveu uma perceção profunda sobre estas questões, agindo quando considera oportuno e mantendo os seus interesses regionais acima de qualquer interferência externa.

É assim que Erdogan decide apoiar o Azerbaijão no conflito de Nagorno-Karabakh, no seguimento de uma relação difícil com a Arménia, passados mais de cem anos sobre os massacres perpetrados pelo Império Otomano contra população arménia que foi deportada, reforçando a sua política regional.

É, também, num contexto de afirmação nacionalista e identitária que Erdogan visita o Chipre do Norte, numa forma de demonstração de inflexibilidade num contexto em que notou uma maior predisposição das autoridades cipriotas para voltar à negociação para a reunificação da República do Chipre.

Num contexto de reforço do posicionamento internacional do país, e da sua reafirmação enquanto ator regional, a Turquia reaproximou-se de antigos rivais, como a Arábia Saudita, Israel, o Egito, a Síria e o Irão. Também viu na guerra na Ucrânia uma hipótese de reforço da sua posição negocial, envolvendo-se desde cedo nas negociações determinantes para a exportação de cereais.

Seja qual for o vencedor das eleições no país, herdará uma política externa feita de equilíbrios e da gestão da posição geopolítica funcional que a Turquia tem, mas que também foi construindo. A complexidade nas suas relações externas e o seu enquadramento na Ordem Internacional são, por isso, desafiantes, mas provavelmente coadjuvadas pela conjuntura atual.

A Turquia entre dois mundos

Desde os tempos do Império Otomano que existiu uma projeção a oriente, mas também uma permanente relação e projeção a ocidente. A Turquia posiciona-se como uma ponte entre dois mundos diferentes nas suas vivências e conceções. Seja qual for o vencedor, a consciência dessa pertença dual e desse papel de intermediador está profundamente enraizado na cultura política turca. As reformas de Kemal Ataturk aproximaram o país do Ocidente, mas sem deixarem cair as raízes nacionalistas que perduram até hoje.

Kiliçdaroglu defende uma maior interação com os países ocidentais, procurando o seu apoio para as reformas estruturais que pretende encetar. Inclui neste pacote de ação o regresso ao palco negocial para a integração na União Europeia. Internamente, levanta a questão de como iria o parlamento, liderado pelos apoiantes de Erdogan, reagir. Externamente, coloca a reação da União Europeia ao reencetar de negociações sérias para a entrada da Turquia na organização, promessa adiada por dezenas de anos.

Neste sentido, a eleição de Kiliçdaroglu não só levanta questões para os países europeus, como também para o conjunto dos países que se incluem nesta classificação de “ocidental”. Ao iniciar tais reformas internas e ao voltar ao lado ocidental do país, Kiliçdaroglu esperaria uma resposta proativa deste lado do hemisfério. A perceção de falta de apoio por parte da população turca colocaria em risco imediato qualquer reforma em curso.

Do lado asiático há, também, uma expectativa de maior envolvimento da Turquia nas iniciativas da região, sob diversos formatos: participação em organizações internacionais, mas também reforço das relações bilaterais. Erdogan não esclareceu quanto às suas opções para a política externa, mas na prática tem procurado uma aproximação ao Médio Oriente e à Ásia, em geral, de forma a reforçar o seu papel geopolítico.

Estas eleições são também decisivas para a orientação a dar à política externa turca, sendo certo que esta nunca abdicará da sua ambivalência e ponto de encontro e mediação entre o Ocidente e o Oriente.

Nota: Agradeço ao jornalista Pedro Caldeira Rodrigues a confirmação de alguns dos dados aqui incluídos.