É já inevitável a perceção de que a Covid-19 vai cunhar uma era. Todos conhecemos a dura realidade da pandemia e a resposta exigente que a mesma está a implicar, por vezes até ao extremo do trauma civilizacional. Este statu quo, só por si, já deixa antever uma mudança que ultrapassará o imediato e que terá de ir além da alteração de rotinas e modelos clínicos, de sociabilidade e de laboração.

De um ponto de vista organizacional e estrutural e no contexto da União Europeia (UE), é urgente que nos debrucemos sobre a pandemia numa perspetiva de futuro. Será possível aprender com uma pandemia no decurso da mesma, como quem está no coração de um furacão? Acreditamos que sim – que é – e achamos que para a UE é um imperativo e um momento para salvaguarda de união. O papel de espetadora passiva não é compaginável com uma UE resiliente, justa e interventiva também a nível da definição dos seus próprios contornos sociais. Esta é a linha que seguiremos ao longo deste artigo.

A produção de conhecimento acerca da pandemia tem sido abundante e transversal a todas as áreas. De todas as pandemias que a história tem averbado, esta é aquela em que a humanidade se encontra, mais do que nunca, num estádio propício à reflexão. Nessa mesma reflexão, há dois conceitos que se destacam: o de “crise” e o de “oportunidade”. Não como sinónimos ou como antónimos, ou sequer polos, mas mais como pontos sequenciais.

O primeiro como ponto de partida, pela descrição que faz da situação e daquilo que lhe deu origem. O segundo, pelas propostas orientadas sobretudo para a mudança e para um ponto de chegada em que estaremos não só melhor, do ponto de vista da saúde e da vida, mas melhores enquanto civilização, enquanto seres humanos e enquanto sociedade democrática. O que propomos aqui é operacionalizar de forma rápida a articulação destes conceitos e aplicá-la à prevenção da impreparação, no que se refere ao quadro jurídico institucional da UE, em questões referentes à gestão de crises de saúde pública.

Acreditamos que a melhor forma de concretizar o objetivo acima referido é a aposta numa relação cada vez mais recíproca e sucessiva entre os Estados-membros, privilegiando parcerias, modelos de cooperação, sinergias e alianças estratégicas. Como parlamentares e democratas, só podemos reconhecer a validade da pluralidade no que toca à adequação das prioridades legislativas. A título de exemplo, refira-se a proposta de lei comunitária sobre Avaliação das Tecnologias de Saúde (ATS), para a qual a Presidência Portuguesa já recebeu luz verde para o início das negociações com o Parlamento Europeu (PE).

A proposta visa uma avaliação da vantagem terapêutica de novos medicamentos, dispositivos e tecnologias, da qual, pela cooperação, os peritos de todos os países sejam afluentes de decisão. É impossível não lhe reconhecer e louvar o caráter inclusivo, assente no facto de todos os Estados-membros participarem e na agilização da articulação entre a Agência Europeia do Medicamento e as autoridades nacionais. Outros exemplos haverá e cabe-nos a todos lutar para que mais floresçam.

A UE deve também combater o bystander effect perante o recrudescimento do isolacionismo. Por todo o mundo, temos assistido a fenómenos de egoísmo, individualismo e centralização do conhecimento, da tecnologia e até de terapêuticas. Fundamental é que lutemos por uma UE que se posicione globalmente como defensora da partilha da inovação e do saber e cuja identidade assente num organismo que luta não só pela solidariedade no seu espaço, mas que apela à mesma no resto do mundo, recusando, em absoluto, a xenofobia.

Subjacente aos processos acima descritos está o matizar de uma UE não demissionária das questões da Saúde e que assente num pressuposto conceptual que englobe uma abordagem de segurança sanitária coordenada e biopsicossocial. Ou seja, uma UE que integre a saúde na sua dimensão humana, animal e ambiental.

Mais uma vez, o caminho terá de ser o do diálogo e da cooperação com vista a adequações legislativas conjuntas, sempre partilhadas e debatidas conjuntamente. À partida, este caminho envolve, em questões de política de saúde, desde já uma aferição das determinantes sociais da saúde e do acesso no espaço da UE. Na sequência, segue a necessidade de uma discussão produtiva sobre o investimento em equipamentos e estruturas de resposta e na promoção da saúde e da prevenção que não menospreza o tratamento, defendendo que os mesmos são complementares e não antagónicos.

Como podemos falar de justiça social e de um projeto comum de saúde aos cidadãos da nossa União, se no nosso próprio espaço, continuam a existir ainda assimetrias no que toca à esperança média de vida saudável? Podemos começar por dizer-lhes, com verdade, que estamos solidária e concertadamente a lutar pelo melhor modo de começarmos a corrigi-las.

Por último, uma última palavra para lembrar algo indissociável da UE: a ausência de fronteiras. A pandemia irrompeu nas nossas vidas para nos relembrar isso mesmo. Tal como a pandemia não reconhece limites geográficos, também o seu combate não pode fazê-lo. Por esse motivo – e muitos outros – que sentido fazem os nacionalismos? Pouco e, cada vez mais, nenhum.

Não acreditamos que seja necessária uma nova União Europeia. Medidas como o Certificado Verde Digital e a Incubadora Hera mostraram a vitalidade dos valores que originaram a UE. Precisamos é de continuar a construir a União Europeia tendo sempre, como trave-mestra, a sua pluralidade.