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A última lição do matemático humanista Nuno Crato

O professor de Matemática e Estatística fez 70 anos e terminou a sua carreira como catedrático no ISEG. A sua última aula foi uma magistral viagem pela vida e pelo conhecimento.
19 Março 2022, 20h00

Nuno Crato despediu-se do mister de professor catedrático de Matemática e Estatística do ISEG numa aula profundamente poética e emotiva, que iniciou com uma memória eloquente dos seus onze anos.

“Há quase 60 anos, estava eu no primeiro ou segundo ano do Liceu Pedro Nunes, quando assisti a uma cena que me surpreendeu. Um professor septuagenário atravessava o pátio, vagarosamente, penosamente, apoiado no reitor. Ia escoltado por uma dezena de colegas que se deslocavam mais lentamente do que o habitual para acompanhar o velho senhor. Era o Dr. Raimundo. E mais nada sei dele salvo que, como então murmuraram ao pé de mim, tinha feito 70 anos, ia dar a sua última aula…”

Na última sexta-feira, 11 de março, foi ele, Nuno Crato, que deu a sua última aula no ISEG, onde é professor catedrático. Aí, confessou que, tal como nesse dia longínquo, no presente, 70 anos nada lhe dizem. “Fazer 70 anos é algo que continua a nada me dizer… os tempos são outros, a longevidade é outra. E faço parte dos que pensam que devemos todos, sempre que o podemos fazer, trabalhar mais.”

Curiosamente, também, Clara Raposo falou de idade, quando na qualidade de presidente do ISEG traçou um breve retrato do professor. “Acaba de fazer 70, mas o seu aspeto parece ter aproximadamente metade e a energia corresponde à raiz quadrada de 70”. De Nuno Crato disse que é uma “pessoa luminosa”, um “docente cheio de carisma”, um “matemático humanista” e um “colega muito querido”.

Elogiou-lhe a curiosidade de um miúdo, a frescura da juventude, o brilho no olhar.

Em rigor, a hora seguinte foi a mostra de tudo isso. Nuno Crato levou o auditório por uma viagem magistral contada através das pessoas da sua vida, dos números, gráficos, séries temporais de memória longa, modelo de regressão linear, descobertas científicas. Uma viagem em que a educação e o ensino mereceram reflexão aprofundada.

“Em educação — afirmou — nada pior do que esquecer o essencial”. E o essencial é a base. “Sempre que se abranda a exigência do ensino básico e secundário, mais deficiências em português, em a capacidade de expressão, em raciocínio lógico, em instrumentos quantitativos terão os alunos que ingressam no ensino superior”.

Na sua preleção, o matemático e também ex-ministro da Educação e da Ciência considerou, mais adiante, que “o conhecimento e o rigor estão hoje sob ataque de várias frentes”. A primeira, adiantou, são as “correntes de inspiração pós-moderna que tendem a relativizar todo o conhecimento para o menorizar, e que tendem a ‘desconstruir’ todas as asserções, não para as substituir por conclusões melhores, mas para deixar um vazio e hesitação a partir das quais a dúvida deixa de iluminar a procura da verdade para passar a paralisá-la”.

Na linha da frente desse ataque estão também as orientações pedagógicas anticientíficas, que recomendam que se desenvolva sentido crítico no vácuo, criatividade na ignorância, comunicação sem conteúdo e colaboração sem objetivo”. São, sintetizou, os quatro Cs das ditas competências do séc.XXI.

Esclareceu que não está em causa a criatividade ou a capacidade de procurar informação. “O erro está em concluir daí que a pura de informação não interessa, que o conhecimento não tem valor em si, pois tudo está à distância de um clique. Na realidade, para procurar informação é preciso saber enquadrá-la e interpretá-la. Ou seja, é preciso ter informação”. Caso contrário, estamos a desenvolver o “fala-barato”.

Nuno Crato deixou claro que divulgação, atividade a que dedicou parte importante da sua vida é uma coisa e educação é outra. “A educação tem de ser sistemática, orientada pela estrutura interna das matérias”, disse, salientando, depois: “A educação não pode ser centrada no aluno, naquilo que mais lhe interessa. Tem de ser centrada na progressão das matérias. A educação tem de ser dirigida”.

O seu pensamento, que norteou a sua ação enquanto ministro, assenta num ensino rigoroso, centrado nos conteúdos curriculares, com metas claras, avaliação e prioridade às disciplinas fundamentais em cada etapa da escolaridade. E na recusa da noção de “competências”, que, na sua perspectiva, secundarizam o conhecimento em favor da capacidade imediata de fazer. No ISEG lembrou os resultados ds política. Entre 2012 e 2015, Portugal aumentou a escolaridade obrigatória para o 12.º ano, tornou o inglês obrigatório por sete anos consecutivos, reduziu para metade o abandono escolar precoce e obteve os melhores resultados de sempre nas avaliações internacionais Pisa e TIMSS. Na investigação, os fundos recebidos ultrapassaram pela primeira vez as contribuições para a ciência europeia, foram criados os TeSP (Cursos Técnicos Superiores Profissionais) e aprovada a fusão das duas Universidades de Lisboa.

O amor de Nuno Crato pelo conhecimento atravessou esta última aula do início ao fim. “Na vida, as informações acumulam-se e mais tarde ou mais cedo vêm a ser úteis. O que se aprende em ciência por simples curiosidade pode vir mais tarde a ser útil na nossa atividade científica”, salientou. Aos jovens deixou um repto inconformista: aprendam línguas; sejam exigentes convosco próprios. “Não basta aprender a ler e a escrever. É preciso saber comunicar bem”.

O auditório Caixa Geral de Depósitos encheu-se de família, alunos e ex-alunos, amigos de todo o lado, professores, investigadores e, claro, o reitor da ULisboa, Luís Ferreira e o anterior, Cruz Serra, entre outros nomes ilustres da academia, da ciência e da política como os antigos ministros Paulo Macedo, David Justino, Eduardo Catroga, Mira Amaral, Marçal Grilo, Jaime Gama, o ex-primeiro ministro, Pedro Passos Coelho, e o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas. No final, Nuno Crato, o professor, foi aplaudido de pé, demoradamente.

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