[weglot_switcher]

“A violência garante sucesso”. Como a Uber garantiu a sua entrada em vários países e contou com a ajuda de Macron

Enviar condutores para protestos violentos de taxistas, fazer lobby junto de políticos para obter legislação favorável ou usar um mecanismo para impedir autoridades de acederem a informação sensível: divulgação de 124 mil documentos revela como a Uber usou o mesmo manual para forçar a sua entrada em vários países.
10 Julho 2022, 17h42

O Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ, responsável pelos Luanda Leaks ou Pandora Papers) teve acesso a mais de 124 mil documentos que permitem vislumbrar como uma das gigantes de Silicon Valley tentu manipular políticos para o seu próprio benefício em todo o mundo.

As ‘Uber Files’ contém 83 mil emails, iMessages e mensagens de WhatsApp que permitem ter acesso a informação em estado bruto, longe da linguagem polida dos comunicados de imprensa da companhia. A revelação desta informação abrange um período de cinco anos (2013-2017) em que a Uber era liderada pelo seu co-fundador Travis Kalanick.

O lema da empresa ao longo destes anos resumia-se a: entrar nos mercados à força, mesmo que isso significasse a violação de leis e de regulação de táxis. Durante este período, a empresa tentou reunir o apoio discreto de primeiros-ministros, presidentes, milionários, oligarcas e patrões da imprensa.

Um deles foi Emmanuel Macron durante o período em que era ministro da Economia, Indústria e Assuntos Digitais (2014-2016).

O “Le Monde” escreve hoje sobre este “acordo secreto” entre a Uber e Macron: “documentos internos da empresa mostram como entre 2014 e 2016 o ministro da Economia trabalhou nos bastidores com a empresa de TVDE, que estava a tentar impor uma desregulação do mercado e enfrentava a hostilidade do Governo”.

“Atacada por todos os lados, a empresa tinha um aliado secreto no seio do Governo: Emmanuel Macron, o ministro da Economia”, segundo o jornal francês.

Um dos exemplos dados é quando Marselha decidiu banir os Uber em 2015. Macron escreveu então a um executivo da Uber: “vou olhar para isto pessoalmente. Nesta altura, vamos manter-nos calmos”.

Nesse ano, Macron disse ao CEO da Uber que o então ministro da Administração Interna Bernard Cazeneuve – que era visto pela Uber como pró-taxi e um obstáculo político – tinha acordado em manter os “táxis quietos” enquanto Macron trabalhava em legislação para liberalizar o sector.

Três dias depois, os escritórios da Uber em Paris foram alvo de buscas pela polícia, com um executivo da empresa a pedir a Macron para manter os reguladores à distância.

Entre 2014 e 2016, os representantes da Uber e Macron tiveram mantiveram comunicações secretas, incluindo quatro encontros.

As “Uber Files” também revelam como o próprio Travis Kalanick rejeitou conselhos de outros executivos da empresa sobre os riscos de enviar motoristas da Uber para protestos de taxistas em França. O então CEO foi alertado que “arruaceiros de extrema direita” tinham se infiltrado nos protestos dos taxistas e que estavam a “procurar luta”.

“Penso que vale a pena. A violência garante sucesso. Devemos resistir a estes tipos”, respondeu na altura Kalanick.

Noutra ocasião, o CEO e o ex-banqueiro da Rothschild trocaram mensagens que revelam uma maior cumplicidade. “Obrigado caro Travis. vamos manter-nos em contacto e evoluir em conjunto. Cumprimentos, Emmanuel”.

Noutra mensagem, Travis Kalanick agradece pessoalmente o empenho de Macron na sua causa. “Levou muito a sério o seu comentário de que acredita que a Uber ‘traz inovação e empregos para França’. Comprometo-me que vamos fazer isso mesmo, a uma ritmo elevado, se for aprovada a devida moldura legislativa para tornar a Uber num sucesso em França”.

O jovem ministro da Economia realizou 50 chamadas telefónicas, trocas de emails ou encontros presenciais com executivos da Uber. Manteve também quatro encontros presenciais com Kalanick: apenas um foi tornado público, em Davos em janeiro de 2016.

Numa entrevista com a “Mediapart”, Macron disse que a Uber seria crucial para impedir que os jovens desempregados dos ‘banlieues’ (bairros sociais) “vendam droga”. Na mesma ocasião, insistiu que o seu trabalho era ajudar os “inovadores”.

Macron também disse à Uber que tinha chegado a “acordo” com os membros do Governo socialista liderado por François Hollande que era favorável à empresa depois de conversações com o primeiro-ministro Manuel Valls e com o ministro da Administração Interna Bernard Cazeneuve.

“Devemos confiar no Caz?”, pergunta Kalanick a Macron. Em resposta, o ministro diz: “tivemos um encontro ontem com o primeiro-ministro. Cazeneuve vai manter os táxis qietos e eu vou reunir todos na próxima semana para preparar a reforma e corrigir a lei. Caz aceitou o acordo. Cumprimentos”, escreveu Macron.

Às 20 horas desse dia, a Uber decidiu retirar do mercado francês um dos seus serviços mais contestados, o UberPop.

Questionado sobre este tema, Cazeneuve disse agora desconhecer este acordo e que tinha sido “muito duro” com a Uber: “tive uma forte intuição que isto merecia a maior das durezas”.

O gabinete do presidente francês não quis comentar a relação de Macron com a Uber, limitando-se a dizer que, enquanto ministro da Economia, reuniu-se com muitos representantes de empresa no sector dos serviços que estavam a enfrentar obstáculos regulatórios.

Em reação, a empresa admitiu “erros e passos em falso” cometidos no passado, mas disse que transformou-se desde 2017 sob a liderança de Dara Khosrowshahi.

“Não temos e não vamos apresentar desculpas pelo nosso comportamento no passado que não está em linha com os nossos valores presentes. Vamos pedir ao público para julgar-nos pelo que fizemos nos últimos cinco anos e o que vamos fazer nos anos vindouros”, segundo a Uber citada pelo “Guardian”.

Por sua vez, um representante de Travis Kalanick disse que a expansão da Uber foi “liderada por centenas de líderes em dezenas de países em todo o mundo e em todas as alturas sob a supervisão direta e com a total aprovação dos grupos de compliance, legal e de política da Uber”.

A Uber está valorizada em 43 mil milhões de dólares e faz 19 milhões de viagens por dia.

A empresa reuniu-se com o então vice-presidente dos Estados Unidos Joe Biden em Davos, mas também com líderes de outros países: o primeiro-ministro irlandês Enda Kenny, o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu e o ministro das Finança britânico George Osborne, classificado pela empresa como um “forte apoiante”.

No Reino Unido, seis ministros do então governo conservador reuniram-se com a Uber em encontros mantidos secretos.

A empresa empregou em vários mercados um “kill switch”, um mecanismo que impedia os computadores de uma filial acederem aos computadores centrais da empresa, de forma a impedir que as autoridades recolhessem provas.

Esta técnica foi usada pelo menos 12 vezes durante buscas em França, Países Baixos, Bélgica, Índia, Hungria e Roménia.

A decisão de enviar condutores da Uber para protestos potencialmente violentos, apesar dos riscos, é consistente com uma estratégia de usar os condutores e de explorar a violência contra os mesmos para “manter viva a controvérsia”, segundo disse um antigo executivo da Uber ao “Guardian”. Este recital foi repetido em Itália, Bélgica, Espanha, Suíça e os Países Baixos.

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.