Pouco se tem discutido sobre o impacte que a última vaga da pandemia poderá ter sobre a participação eleitoral. Poderá a abstenção atingir um valor disruptivo? A tese parte da ideia base que muitos eleitores poderão ter receio de se meterem em filas para votar, o que irá impactar as sondagens que dão uma larga vantagem ao candidato incumbente, Marcelo Rebelo de Sousa.

O senso comum diz-nos que quanto maior for a abstenção menor será a votação no centro político e, por inferência simples, prejudicará a candidatura do atual Presidente da República. Por outro lado, os eleitores de candidatos antissistema, e de franjas fora do centro político, tenderão a ignorar mais os perigos relacionados com o voto presencial e terão uma participação elevada.

Níveis de abstenção acima de 60% poderão trazer ao de cima o espectro de uma segunda volta

O nível de participação nas últimas eleições presidenciais (Pordata) tem apontado para cerca de 50% de falta de comparência dos eleitores. O receio face ao voto presencial pode acentuar-se se nas próximas semanas a confirmarem-se o elevado número de novos casos de infetados, sobretudo se relacionados com a nova estirpe do vírus em Portugal, e a necessidade de imposição de medidas restritivas adicionais para controlar a propagação durante o mês de janeiro.

Não existe em Portugal, como houve nos Estados Unidos, uma solução de voto remoto ou por correio que permita compensar em larga escala a falha no voto presencial. Isto pode levar a uma queda acentuada das votações ao centro, e daqui pode resultar uma eventual surpresa no dia das eleições.

Resta saber se um aumento significativo da abstenção (por exemplo superior a 60%), motivada pela falta de comparência dos eleitores por receios ligados à nova vaga pandémica, colocaria em risco as sondagens que apontam para uma vitória robusta do Marcelo Rebelo de Sousa na primeira volta. Ou se a podem transformar numa vitória mais tangencial, mais próxima dos 50%, o que na essência pode abrir a porta a uma segunda volta eleitoral.

Uma espécie de primárias socialistas e a liga dos últimos

Existem outras corridas interessantes nesta eleição presidencial. O polémico político André Ventura, que incorpora uma agenda antissistema, impôs publicamente o objetivo de ficar à frente da candidata Ana Gomes, ela que também se pregoa como uma enfant terrible contra o statu quo do centro político.

A verdade é que, neste duelo, uma espécie de liga dos últimos, é Ventura que se coloca mais em jogo no que diz respeito ao futuro político. Para além de ter prometido a sua demissão enquanto líder do partido, estas presidenciais também constituem uma rampa de lançamento do Partido Chega para uma fase de afirmação a nível nacional, e de posicionamento do seu novo partido junto do eleitorado.

Ao carisma e causas fraturantes que Ventura tem capitalizado, faltará, contudo, “sistema” para colher voto do centro-direita de forma sustentável nos próximos atos eleitorais, que seja suficiente para dar um salto significativo como solução de poder.

As associações à extrema-direita nacionalista europeia e a radicalização do discurso político ajudam pouco e condicionam o crescimento na esquerda conservadora dos costumes (como é o caso de eleitores do PCP, onde Ventura até teve boa receção inicialmente em alguns bastiões do Alentejo), e limitam o espaço no eleitorado tradicional do PSD. Isto ficou evidente, por exemplo, no debate com Marcelo Rebelo Sousa. Ventura é cada vez mais refém de uma agenda restrita de protesto e do seu carisma pessoal, e isso poderá tornar-se penalizador na pequena corrida a uma eventual segunda volta presidencial.

Já Ana Gomes, apesar de menor carisma pessoal e discurso menos assertivo, pode beneficiar de ganhos ao centro político, em virtude do processo de uma espécie de primárias socialistas, que estão a decorrer ao mesmo tempo que as presidenciais.

Não será alheio a esta capacidade de chegar ao centro-esquerda, os apoios significativos do sindicato de votos do influente ministro Pedro Nuno Santos, que colocarão ao colo da candidatura de Ana Gomes a agenda de afirmação desta “clique” socialista no cenário de sucessão a António Costa – um braço de ferro silencioso entre Pedro Nuno Santos, Ana Catarina Mendes e Medina. Por esta razão, Ana Gomes terá mais condições para ficar em segundo lugar nas presidenciais e, eventualmente, criar uma surpresa geopolítica a nível nacional, caso haja uma segunda volta.

E se houver uma segunda volta?

A probabilidade de um cenário de uma segunda volta pode crescer à medida que entramos num período de confinamento, decorrente de uma complexa combinação entre o legado do impacte natalício e da circulação da nova estirpe do coronavírus. A falta de soluções alternativas de votação remota poderá levar a um nível recorde de falta de comparência às urnas, que, a priori, afetará mais o atual Presidente da República.

Se existir um nível de abstenção disruptivo ao ponto de suscitar uma segunda volta, apesar da mediatização de André Ventura, o mais provável é ainda que esta se dispute entre Marcelo Rebelo de Sousa e Ana Gomes – tendo em consideração a média das sondagens e a expectável mobilização da esquerda socialista no voto anti-Ventura.

É ainda o cenário onde creio que poderá verificar-se uma significativa alteração do paradigma político em Portugal – mesmo que o atual presidente esteja sempre em posição de vencer na segunda volta (é o único candidato que estará acima da lógica das somas partidárias), o embaraço que causará dentro do Partido Socialista será suficiente para atingir politicamente António Costa, que averbará, nesta situação e em qualquer cenário final da eleição presidencial, uma relevante derrota política pessoal.