Com  a queda de Baghouz, o Daesh perdeu o seu último bastião na Síria, colocando-se assim um ponto final no sonho do califado. Encontra-se agora seriamente enfraquecido. Definhou e perdeu capacidade para desafiar convencionalmente as forças governamentais. Para sobreviver terá de reverter para formas de luta mais contidas.

Parte do espólio de Bin Laden encontrado no seu refúgio em Abbottabad, entretanto tornado público, permite-nos perceber o seu pensamento estratégico e as profundas divergências que mantinha com os líderes do Daesh. Embora partilhassem o mesmo objetivo estratégico, isto é, estabelecer um califado, as formas de o atingir eram significativamente diferentes.

Divergiam, por exemplo, nas prioridades estratégicas. Bin Laden priorizava a guerra contra o inimigo distante (EUA e Europa). O confronto com o inimigo próximo (xiitas e governo em Bagdade) devia ser adiado para mais tarde. Ao contrário de Bin Laden, o inimigo próximo era a principal preocupação de Zarqawi e depois de Baghdadi.

Outra discordância, prendia-se com o momento adequado para fundar um Estado Islâmico no Iraque. Bin Laden opunha-se determinantemente ao estabelecimento de um Estado Islâmico sem as condições se encontrarem maduras. Era “colocar o carro à frente dos bois”. Iria ser aniquilado como já tinham sido outras tentativas de o criar, por exemplo, no Afeganistão. A “criança” iria ser esmagada antes de se poder defender. O califado deveria ser o último estágio da luta para estabelecer um governo islâmico, não o primeiro.

Bin Laden argumentava que se deveria travar primeiro uma guerra de atrição contra os EUA para enfraquecer a sua capacidade de retaliação, de modo a que fosse mais difícil derrubar futuros Estados islâmicos. Em quantos mais conflitos estivesse envolvido o “grande satã”, melhor seria. Havia, pois, que o empenhar em guerras, consumi-lo, infligir-lhe baixas e sofrimento insuportáveis, exauri-lo nos campos de batalha afegãos e iraquianos, drenar-lhe os recursos e acima de tudo a vontade.

A estratégia orientava-se para os EUA por serem os responsáveis pelo statu quo político vivido no Médio Oriente e Norte de África. Para além de os desgastar, eram oportunidades únicas para expandir a jihad para a Arábia, Iraque, Síria, Líbano, Jordânia e Palestina. Esperava-se deste modo alterar a política externa dos EUA, forçando-os a abandonar os governantes árabes e muçulmanos à sua sorte. Uma vez isso conseguido, ficava escancarada a porta para aceder às capitais dos países muçulmanos do Médio Oriente e do Norte de África. Seria então hora de acertar contas com os “governos apóstatas”.

Se, por um lado, a queda de Baghouz materializou simbolicamente o prognóstico de Bin Laden, os líderes do Daesh, inebriados pelo sucesso inicial da campanha militar, não quiseram ouvir os conselhos do líder da Al-Qaeda; por outro, a invasão do Afeganistão e do Iraque serviram objetivamente a grande estratégia da Al-Qaeda. A anunciada retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão e do Iraque é em parte reflexo da guerra de atrição travada durante longos anos, em conformidade com o plano defendido por Bin Laden. Não fosse a insensata estratégia do Daesh e a situação seria hoje muito mais desfavorável daquela que é.