A morte do argumentista francês Jean-Claude Carrière, no início desta semana, fez-me regressar a alguns dos seus livros didáticos sobre a linguagem do cinema e a construção narrativa, fruto do seu trabalho com inúmeros gigantes da sétima arte.

Na sua obra “Le Film Qu’on ne Voit Pas”, começa por descrever os primórdios do cinema e do impacto que a nova tecnologia teve em muitas sociedades habituadas à tradição oral de contar histórias. Nessa transição entre os séculos XIX e XX, a nova linguagem criada pelo cinema tornava necessário que em certos países do Norte de África e em Espanha recorressem à figura de um “explicador”, que permanecia de pé ao longo do filme, a explicar a ação para uma audiência chocada com esta nova conjunção de imagem, som e luz que não conseguiam absorver sem algum esforço e dificuldade.

A figura do explicador desapareceu poucas décadas depois com a normalização do cinema. Os filmes transformaram-se não só numa das principais formas de entretenimento e escapismo das massas, como num poderoso instrumento de expressão artística.

Se avançarmos cem anos no tempo, o que encontramos? O nascimento e evolução de uma nova linguagem digital, possibilitada pela Internet, que desencadeou uma revolução na forma como trabalhamos e interagimos. É uma linguagem em constante mutação (tal como um vírus), que progride a uma velocidade muito mais impressionante do que a registada nos primórdios do cinema. Esse público de outrora teve tempo, e explicadores, para se adaptar a novas abordagens, ao contrário dos dias de hoje em que muitos acabaram por ficar à margem dessa linguagem.

Atualmente, mesmo os mais literatos de nós sentem a enorme pressão de lidar com o enorme volume de fenómenos, informação e possibilidades que irrompem todos os dias. A velocidade é tal que se torna não só difícil mantermo-nos informados com rigor, como exigir dos decisores políticos a regulação necessária que zele pelo interesse público. E o que dizer da forma como esses fenómenos têm aberto fissuras nos alicerces da democracia, minando as instituições e a relação entre Estado e cidadão?

Se refletirmos bem, constatamos que há novas desigualdades a agravarem-se dentro de velhas desigualdades, transversais a todos os setores. Podemos até ir buscar o exemplo das limitações do atual ensino à distância, forçado pelo confinamento, onde se tornam evidentes as dificuldades enfrentadas por famílias e crianças.

A linguagem digital virou o nosso mundo do avesso, da mesma forma que o SARS-CoV-2, e ambos estão constantemente a evoluir, a ultrapassar-nos e a escapar ao nosso controlo ou regulação. Faltam-nos os recursos adequados para nos anteciparmos aos transtornos que ambos têm o potencial de provocar. Sabemos assim que, se não nos anteciparmos, corremos o risco de permitir que o vírus controle as nossas vidas.

Não podemos permitir que a iliteracia digital nos afunde num mundo descontrolado em que somos facilmente manipulados, da mesma forma que muitos cineastas manipulavam as nossas emoções. Podemos tentar usufruir do melhor que essa linguagem tem para oferecer, mas sem nos deixarmos dominar pelo seu lado negro. Se ainda formos a tempo.