O bicentenário do nascimento do pai do marxismo assinala-se no próximo mês de maio e em Portugal a efeméride é evocada pelo Partido Comunista Português (PCP) e pelo Bloco de Esquerda (BE), os únicos partidos com assento parlamentar que dizem ter base teórica no ideário de Karl Marx.
O BE celebra a efeméride em março, enquanto o PCP inicia um conjunto de comemorações já este sábado, 24, pelas 10h30, na Voz do Operário, em Lisboa, com a conferência “II Centenário do Nascimento de Karl Marx – Legado, Intervenção, Luta. Transformar o mundo”.
A figura de Marx continua a ser reverenciada pela Esquerda, embora o programa eleitoral do PCP e do BE, das últimas eleições legislativas, não mencione o nome do filósofo e sociólogo que marcou o século XIX. O Jornal Económico endereçou, por isso, algumas questões a Albano Nunes, reconhecido ideólogo comunista que saiu do comité central e do secretariado do comité central do PCP, em 2016.
O trabalho de Karl Marx definiu uma época de confronto de ideias. É possível mensurar a influência de Marx no pensamento económico e social? Como?
Sim, podemos dizer que há um ‘antes’ e um ‘pós’ Marx. E porquê? Porque, dando expressão às novas realidades económicas e sociais do século XIX – o desenvolvimento do capitalismo e da grande indústria, a entrada da classe operária na cena da História – e apoiando-se nas aquisições do pensamento mais avançado do seu tempo – na filosofia (alemã), na economia política (inglesa) e no movimento socialista (francês) – Marx, em estreita colaboração com [Friedrich] Engels, desenhou uma nova conceção do mundo, materialista e dialética, apontada à efetiva libertação da Humanidade de todas as formas de exploração e opressão. Sujeitando a uma análise crítica demolidora as conceções ideológicas e políticas dominantes, Marx não se limitou a denunciar a natureza desumana do capitalismo, pôs em evidência as suas insanáveis contradições e o papel histórico do proletariado na sua superação e na construção de uma nova sociedade livre da exploração e da opressão de classe, a sociedade socialista e comunista. Crescentemente apropriado pelo movimento operário e influenciando vastos sectores democráticos e progressistas, o marxismo tornou-se uma poderosa força transformadora cujo primeiro grande feito, após a epopeia da Comuna de Paris, foi a Revolução Socialista de Outubro, que por sua vez influenciou os grandes avanços e transformações revolucionárias do século XX.
As ideias apresentadas por Karl Marx ainda são válidas? Que evidências há da sua aplicação atualmente?
Creio que basta olhar à nossa volta com olhos de ver, libertos da ganga terrível das fake news, para concluir que sim, que as ideias de Marx são mais atuais do que nunca. Não obviamente nos detalhes.
O marxismo não é uma doutrina revelada, mas uma teoria intrínsecamente ligada com a prática, que se desenvolve e enriquece em função das novas realidades e com o progresso dos conhecimentos científicos. E nos dois séculos passados sobre o nascimento de Marx o mundo mudou muito e o avanço da ciência e da técnica foi gigantesco. Mas há algo de fundamental que não mudou: a natureza do capitalismo assente na propriedade privada dos meios de produção e na exploração do trabalho assalariado, a procura desenfreada do máximo lucro. A contradição fundamental do capitalismo evidenciada por Marx – entre o carácter social da produção e a forma privada da apropriação – não cessa de se agudizar com consequências cada vez mais devastadoras. Dois exemplos apenas: uma inaudita centralização e concentração do capital e da riqueza e o incessante aprofundamento do fosso entre ricos e pobres.
As extraordinárias conquistas científico-técnicas que, apropriadas pelo grande capital, em lugar de utilizadas em benefício da sociedade – a começar pela redução do horário de trabalho – ameaçam com o desemprego e novas formas de sujeição. E se atentarmos em que os sectores mais reaccionários e agressivos do imperialismo ameaçam responder ao aprofundamento da crise estrutural do sistema, com uma violenta regressão social e democrática e mesmo com a guerra nuclear, mais evidente se torna a validade das ideias de Marx e a exigência da superação revolucionária do capitalismo.
O “Manifesto Comunista” e “O Capital” são os trabalhos dominantes no pensamento de Marx. Ambas as ideias ainda são exequíveis?
Sem dúvida que sim. O “Manifesto Comunista” que foi o primeiro programa do partido comunista (na altura a Liga dos Comunistas), foi redigido em vésperas da “Primavera dos Povos”, as revoluções de 1848/49 na Europa, revoluções em que pela primeira vez a classe operária, embora derrotada, interveio com as suas reivindicações próprias e não, usando uma expressão do próprio Marx, como “cauda da burguesia”. 170 anos passados muita coisa mudou nas formas de organização do movimento operário, no enraizamento dos partidos comunistas nas massas e na diversidade dos seus programas.
O Programa do PCP é disso mesmo exemplo. Mas as suas ideias centrais e a sua célebre palavra de ordem de “proletários de todos os países uni-vos!”, passaram a prova do tempo e, enriquecido com as novas experiências da luta libertadora dos trabalhadores e dos povos, o “Manifesto” continua a ser bandeira dos partidos comunistas na atualidade.
“O Capital” foi escrito há mais de 150 anos e existem hoje conceitos e práticas económicas que não existiam então. É possível concluir a teoria de Marx nos dias de hoje? Como?
Não, não é possível ‘concluir’ a teoria de Marx, pela simples razão de que o marxismo é uma teoria, inseparável da prática e por definição inacabável. O que é, não só possível mas absolutamente necessário, é desenvolver e enriquecer o marxismo em ligação com a evolução do progresso da ciência e a evolução da sociedade, e pela reflexão e intervenção coletiva dos comunistas e das massas populares. Vejam-se os desenvolvimentos que o pensamento de Marx teve com base na experiência da Comuna de Paris. Ou, com a passagem do capitalismo à sua fase imperialista e a primeira revolução socialista vitoriosa, enriquecendo-se com o genial contributo de Lénine, um contributo tão valioso que o seu nome ficou para sempre associado ao de Marx no conceito de marxismo-leninismo.
Na atualidade da globalização imperialista, da generalização e diversificação das lutas libertadoras e anti-imperialistas, do espantoso desenvolvimento de ciências e técnicas como a biologia ou a inteligência artificial, novos aprofundamentos são indispensáveis.
O “Manifesto Comunista” defende que o partido de proletariado não faz coligações com os chamados “partidos da burguesia”. No entanto, o PCP viabilizou o governo do PS. O que dizer disso?
A pergunta parte de dois equívocos: no que respeita ao “Manifesto Comunista”, Marx não nega a importância de alianças do proletariado, defende sim alianças para combater o capital e não para se colocar a reboque e ser instrumentalizado pela burguesia como até então tinha acontecido, nomeadamente nas revoluções burguesas de 1848/49. Marx centra-se na necessidade do proletariado criar o seu próprio partido de classe independente e oposto à burguesia, mas não nega, antes defende a necessidade, preservando essa independência, de alianças com outras forças democráticas.
Quanto ao PCP, não se ‘aliou’ nem ‘coligou’ com o PS, coisa impossível dada a conhecida dependência deste partido em relação ao grande capital e às imposições externas. A posição do PCP em relação à solução política que saiu das eleições de 2015, um governo do PS, está balizada na posição conjunta PCP/PS visando o afastamento do PSD/CDS do governo e a reposição de direitos e rendimentos de que os trabalhadores e o povo haviam sido violentamente esbulhados. Por isso o PCP valoriza os avanços que neste sentido se verificaram, nomeadamente no Orçamento do Estado, ao mesmo tempo que sublinha que se trata de avanços limitados e que, só rompendo com a política de direita e os constrangimentos da União Europeia, só com uma política patriótica e de esquerda, será possível desenvolver o País e assegurar a soberania de Portugal.
Uma sociedade sem propriedade privada, onde o Estado é capaz de responder às necessidades dos povos e em que o salário não é fator de divisão de classes pode ainda ser objetivo de um projeto político? Não estarão estas ideias desfasadas do mundo atual?
Marx nunca defendeu a abolição de ‘toda’ a propriedade e muito menos da propriedade de bens pessoais. O que defendeu foi a necessidade do poder da classe operária expropriar os ‘principais’ meios de produção tornando a propriedade social determinante e possibilitando o racional planeamento da economia. Aliás, a importância decisiva do Estado ter sob o seu controlo e propriedade sectores estratégicos indispensáveis não só ao desenvolvimento do país mas à defesa da sua soberania está patente nas consequências da privatização de empresas como os CTT, a EDP, a ANA e outras.
Essa é hoje a posição geral dos partidos comunistas, com a consideração, de acordo com a situação concreta de cada país, do maior ou menor peso da pequena propriedade e da propriedade individual, da dimensão do papel do mercado, do carácter mais ou menos imperativo da planificação, além de outros aspetos. As diferentes experiências de construção de uma sociedade socialista, uma realidade extraordinariamente nova em termos de tempo histórico, continuam a ser objeto de estudo, consideração e de diferenças de opinião.
Se há algo no seu programa que o PCP e outros partidos comunistas consideram comprovado e adquirido é a concepção de Marx quanto à expropriação do grande capital monopolista e ao controlo pelo poder dos trabalhadores dos sectores chave da economia.