A forma como a comitiva sportinguista foi recebida nos Açores, no passado fim de semana, extravasa em muito o campo do futebol e está para além da paixão clubística. De facto, num Estado de Direito é inadmissível que a receção aos jogadores, equipa técnica e dirigentes tivesse acontecido ao som de gritos de “Alcochete sempre!”.

Sendo certo que o desporto alimenta paixões e que qualquer jogo consegue abafar a racionalidade mesmo daqueles que pautam a sua vida pela chamada normalidade, não é menos verdade que este episódio terá de ser analisado a outro nível. A complexidade assim o exige até porque a situação é tanto mais grave quando está a decorrer o julgamento dos presumíveis implicados ou envolvidos nas bárbaras agressões daquele que, do ponto de vista sociológico, constituiu o dia mais negro do desporto em Portugal.

De facto, é impossível não ver nesta receção um claro desafio às instituições e não apenas do clube de que os membros das claques se dizem adeptos. Um desafio que pouco ou nada tem a ver com aquilo que se passa no retângulo de jogo. Em Alcochete a bola não bateu na barra. A primeira foi substituída por matracas, tacos de basebol e outros objetos contundentes. A segunda deu lugar ao corpo, com especial preferência pela cabeça e rosto, dos jogadores e da equipa técnica.

Se a gravidade do nefasto acontecimento não pode ser omitida, a situação ganha contornos ainda mais críticos quando alguém se julga no direito de apregoar publicamente a violência cometida como se de um feito se tratasse. O desafio ao sistema democrático foi longe demais. A liberdade sem responsabilidade torna-se libertinagem.

Em Alcochete, os invasores não tiveram em conta que, a exemplo do que se passa na política, os mandatos dos órgãos dirigentes não são imperativos. Cegaram e como tal não conseguiram ver que os contratos dos jogadores e dos treinadores não estabelecem o dever de ganhar. Estipulam, tal como o lema do clube em causa, que defendam as suas cores com esforço, dedicação, devoção e glória, sendo que esta não é apanágio exclusivo das vitórias. No desporto há que aprender a conviver com os resultados.

Os episódios de Alcochete e dos Açores encarregaram-se de mostrar a premência de uma discussão profunda sobre o papel das claques como grupos organizados. O artigo 46.º da Constituição Portuguesa garante a liberdade de associação. Porém, exige que as associações “não se destinem a promover a violência e os respetivos fins não sejam contrários à lei penal”.

Assim sendo, há que atuar a dois níveis. Em primeiro lugar, aquando da legalização das claques. Os estatutos não podem ser omissos quanto aos objetivos e âmbito das atividades e os responsáveis terão de merecer essa designação. Depois, há que controlar as suas ações, tal como se passa na vida de qualquer organização.

Os murmúrios que vão chegando a público não dão a garantia de que esse tenha vindo a ser o comportamento habitual. Algo que exige clarificação. As claques, tal como os clubes, não estão acima da lei. Não se podem confundir com a multidão que permanece plural e múltipla e, por isso, recusa a obediência e assume uma postura desafiante e descontrolada.

Assim como o nome Sporting Clube de Portugal explicita que a agremiação não se limita a Alvalade, também o que aconteceu em Alcochete e em Ponta Delgada não pode ser circunscrito a um clube de futebol. O fenómeno é mais abrangente e exige reflexão coletiva para encontrar o tratamento adequado. Ignorar essa realidade é criar um campo fértil para que a violência gratuita germine e não poupe ninguém.