Os difíceis tempos vivenciados nos últimos meses encontram reflexo nas normas legislativas que foram sendo massivamente publicadas com o intuito de implementar medidas de apoio e protecção a áreas dos mais variados quadrantes da nossa economia, onde se destaca o sector do arrendamento. As medidas implementadas deveriam ter tido mais qualidade, bom senso e justiça. Aliás, mais do que isso: deveriam ter sido mais equilíbrio e honestidade.

A verdade é que o nosso legislador, por incompetência ou má-fé, não ponderou muitos dos possíveis efeitos colaterais das suas medidas. Em bom rigor, talvez ainda hoje não se tenha apercebido das consequências devastadoras para o direito à propriedade privada do senhorio que algumas comportam. Ou talvez tenha sido mesmo intencional.

No caso do arrendamento, foram várias as insuficiências reveladas pelo nosso legislador. Sublinha-se, entre as medidas de prevenção, contenção e mitigação da doença Covid-19 no sector do arrendamento, a suspensão da caducidade dos contratos de arrendamento [excepto se o arrendatário não se opuser à cessação de contratos], bem como a suspensão da produção de efeitos da revogação e da oposição à renovação dos contratos de arrendamento efectuadas pelo senhorio.

Se inicialmente esta suspensão vigoraria até 60 dias depois da vigência das medidas de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica, rapidamente esse período foi ampliado, vigorando hoje até 30 de Setembro de 2020 por intermédio da Lei n.º 14/2020 de 9 de Maio.

Sucede que o legislador, inconsciente (?) e desastradamente, desencadeou um grande imbróglio jurídico com que teremos todos de lidar no imediato.

A intenção do legislador mais não foi do que congelar as oposições à renovação já comunicadas com eficácia à data, mas também suspender os efeitos de todas aquelas que venham a ser comunicadas até 30 de Setembro de 2020, evitando a cessação de contratos de arrendamento neste período, e conjecturando a retoma/início nessa data da contagem decrescente para o termo do contrato de arrendamento.

Contudo, olvidou-se (?) de legislar, em simultâneo com a suspensão da caducidade do contrato e da suspensão da produção de efeitos da oposição à renovação, a suspensão do próprio contrato de arrendamento e da sua renovação automática. O que acarreta consequências perniciosas para os senhorios.

Ora, a grande parte dos contratos de arrendamento habitacional e não habitacional a prazo certo comportam uma cláusula de renovação automática em caso de silêncio das partes no que tange à sua oposição à renovação do contrato. Ou, no limite, não contêm qualquer estipulação contratual específica que contrarie essa renovação. Assim sendo, inobservado o aviso prévio a que legalmente as partes estão obrigadas para comunicarem a sua oposição à renovação do contrato, ou nada comunicando em contrário, o contrato de arrendamento renovar-se-á de forma automática por igual período.

Acontece que, se a produção dos seus efeitos se encontra suspensa, juridicamente isso significa que a declaração de vontade de cessar o contrato de arrendamento expressa pelo senhorio, opondo-se à sua renovação, só influirá no desenvolvimento da relação jurídica vigente após 30 de Setembro de 2020. Data a partir da qual voltará produzir os seus efeitos.

E é aqui que reside o grande problema. Se a oposição à renovação eficazmente comunicada permanece com os seus efeitos suspensos por determinação legal, tal não afecta a duração do contrato que continuará o seu decurso.

Isto dito, se a renovação automática do contrato estiver prevista para data anterior a 30 de Setembro de 2020, o que impedirá a que a mesma se efective? Absolutamente nada, na medida em que a oposição à sua renovação [ainda que tempestivamente comunicada] não produz quaisquer efeitos no decurso do contrato naquele período.

Daqui cruelmente resulta que toda e qualquer oposição à renovação comunicada com eficácia até 30 de Setembro de 2020, será irrelevante e não conseguirá influir na renovação automática do contrato, se o termo do mesmo ocorrer em momento anterior aquela data.

Inelutavelmente, no momento em que a suspensão da oposição à renovação for levantada, e for retomada a produção dos seus efeitos, a verdade é que juridicamente tal vontade de desvinculação do contrato apenas produzirá efeitos no termo de um contrato de arrendamento previsivelmente já renovado à data de 30 de Setembro de 2020, tornando ineficiente qualquer oposição à renovação tempestiva e oportunamente declarada, e obrigando o senhorio a manter-se numa relação de arrendamento por igual período de tempo, mesmo contra a sua vontade.

O cenário calamitoso para muitos dos senhorios agudiza-se se pensarmos que podem estar em causa contratos de arrendamento de longa duração, e que serão alvo de renovação automática, sem que os senhorios o possam impedir, não obstante terem oportunamente declarado a sua vontade de impedir a renovação do contrato.

Esta solução, justa não é. E mesmo a sua constitucionalidade e legalidade parece ser bastante duvidosa. Os tempos extraordinários que vivemos, e o estado de emergência anteriormente declarado, podem legitimar medidas de restrição extraordinária do direito constitucional à propriedade privada do senhorio e ao seu direito de livre iniciativa económica privada, em prol do restabelecimento da normalidade e da reversão da situação existente. Todavia, terão de ser sempre medidas adequadas, necessárias e proporcionais, sem colidir com o princípio da proibição do excesso que, neste caso, nos se afigura completamente “abalroado”.

Outrora, ainda numa fase embrionária da aplicação das novas medidas de protecção às relações de arrendamento, exortamos que a incerteza jurídica iria originar copiosos litígios judiciais. Confirma-se. Serão inevitáveis os litígios neste campo. E as questões relacionadas com a suspensão da eficácia da oposição à renovação e a própria duração do contrato é apenas um dos muitos exemplos com isso relacionados.

O sentimento de injustiça vai assolar os senhorios a quem custará compreender tamanha lesão e ameaça aos seus Direitos, Liberdades e Garantias. Restará o acesso aos tribunais para a defesa dos mesmos perante tais medidas com constitucionalidade e legalidade bastante discutível. A incompetência e má-fé do legislador, vai saquear os proprietários/senhorios e inundar os Tribunais.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.