As cidades albergam nas suas artérias os sujeitos invisíveis que habitam os seus cantos, navegando entre nós durante o dia e de noite, mas não são vistos por nós. Como descreve Djaimilia Pereira de Almeida, no seu romance Maremoto, através do seu personagem-narrador Boa Morte da Silva, “[…] sou um homem sem bagagem, ilha, um marinheiro sem navio. Minha terra são esses malucos do Chiado, ninguém nos vê pela rua, podemos andar esfarrapados, ninguém nos olha, mas nós vemo-nos uns aos outros, vivemos aí, na transparência […]” (2021, p. 15)”.
O mundo moderno, pela sua aceleração e ritmo de vida, acentuou esta condição de invisibilidade no nosso quotidiano.
Sobre a situação dos invisíveis, alguns autores usam-na para enriquecer as suas obras, tal como aconteceu com Boa Morte da Silva, que surge na obra de Djaimilia. Segundo um testemunho da autora, deixado no programa televisivo da RTP “Vamos Beber um Café e Falar sobre Isso”, Djaimilia reconstituiu a estória de vida de um sujeito, de um arrumador de carros no Chiado, com quem nunca tinha dialogado. Para conferir um sentido imaginativo e lírico àquela vida invisível, concedeu-lhe o espaço de narrador num romance, permitindo-lhe ressuscitar o senhor que já tinha havia desaparecido.
Talvez este invisível tenha cometido o sacrilégio de desaparecer sem deixar um aviso prévio ou sem se despedir. A sua ausência faz-se sentir, por ser parte da paisagem urbana de uma cidade, sobretudo dos seus centros, mas a sua existência será eternizada pela autora:
“Boa Morte da Silva, filho de pai incógnito, orgulhoso Cuanhama, antigo combatente da guerra colonial na Guiné-Bissau, que matou, torturou e massacrou os seus semelhantes, em nome da bandeira portuguesa”.
Na música também navegam as vidas de alguns invisíveis, através de vagas melódicas e da doçura do canto embelezado pela tristeza que ganha substância de vida, mesmo uma vida desfeita na inscrição da dor. Conforme relata a cantora Mayra Andrade, sobre uma senhora que reside na cidade da Praia, em Cabo Verde, que esperava sempre na rua o seu marido desaparecido no mar. A curiosidade perante esta estória causou à intérprete e compositora uma inquietação de alma, que na sua voz ganhou vida.
Os artistas trazem, na sua arte, os invisíveis para o nosso mundo e quotidiano sem lhes solicitar qualquer tipo de autorização prévia. Em Luanda, onde a vida se desenrola pelos fios da desigualdade, somos sistematicamente confrontados com os invisíveis, que vão crescendo à medida do tempo e da crise social, sobretudo num Estado sem uma política económica e social suficientemente robusta. O crescimento demográfico vai aumentando e o poder político subalterniza políticas de redistribuição da riqueza.
Só quando se colocam à nossa frente, sujeitando-se à nossa discricionariedade, é que somos assaltados pela imagem destes invisíveis. Muitas vezes, desejamos que estejam distantes ou negamos a sua existência para o bem-estar da nossa consciência cívica. Somos, quase todos, obrigados a colocar os olhos nos invisíveis e as dúvidas sobre o estado destas pessoas assaltam as nossas vidas presas a uma realidade de invisibilidade social.
Os invisíveis compõem a paisagem urbana, sem voz, sem demanda e sem capacidade de alteração da sua condição real, porque não exercem o seu direito de voto, ficam, portanto, sem uma voz activa e representativa. São parte da nossa realidade estando fora dessa realidade.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.