Poupança das famílias no valor mais baixo em 18 anos.”

O défice mais baixo da democracia é ainda mais baixo do que se pensava.”

Para os mais desatentos pode parecer que estas duas notícias não têm nada que ver uma com a outra, que são questões independentes e que, por mera coincidência, quando o Governo conseguiu o défice mais baixo da democracia, as famílias portuguesas decidiram poupar menos. No entanto, estes dois acontecimentos são indissociáveis e com a trajetória prevista do défice público para os próximos anos, a expressão “poupança em mínimos históricos” tenderá a ser repetida muitas vezes.

Se considerarmos uma economia dividida em dois grupos, verifica-se que o que um grupo gasta em excesso do que recebe – o seu défice – tem de ser exatamente igual ao que o outro grupo recebe em excesso do que gasta – o seu superavit. Ou seja, para que o primeiro grupo reduza o seu défice, é necessário que o outro grupo reduza o seu superavit.

No caso em questão, do défice público e da poupança das famílias, o que se passa é um pouco mais complicado. Em primeiro lugar existem mais dois sectores a ter em consideração para obtermos o total da economia, o sector empresarial – financeiro e não financeiro – e o sector externo. Em segundo lugar, a poupança das famílias não é exatamente a diferença entre o que recebe e o que se gasta, mas o seu comportamento é obviamente muito semelhante. Dito isto, a lógica é análoga. Considerando os quatro sectores referidos, a redução do défice do Estado implica obrigatoriamente uma deterioração do saldo financeiro conjunto dos restantes sectores. Para que a poupança das famílias se mantivesse inalterada num cenário de redução de défices públicos, seria necessário que o sector empresarial e sector externo compensassem esta redução, aumentando os seus défices ou reduzindo os seus superavits num montante equivalente.

Vejamos o que aconteceu a estes sectores (quadro A.2.3) entre 2012 e 2016. Em 2012, o défice público foi de -5,7% do PIB, o saldo externo foi nulo, o saldo do sector empresarial foi de 2,8% e o saldo das famílias (incluindo as instituições sem fim lucrativo ao serviço das famílias) foi de 2,9%, sendo que a taxa de poupança das famílias foi de 7,8%. Em 2016, o défice público passou para -2,0% do PIB, uma melhoria do seu saldo de 3,7 p.p. quando comparado com 2012. O saldo do sector externo foi de -1,4% do PIB, menos 1,4 p.p. que em 2012, o saldo do sector empresarial foi de 2,6%, uma ligeira redução de 0,2 p.p. relativamente a 2012 e o saldo das famílias foi de 0,8%, menos 2,1 p.p. que o verificado quatro anos antes, a que correspondeu uma taxa de poupança de 4,3%.

Ou seja, a redução de 3,7 p.p. do défice público neste período, foi parcialmente compensada por um aumento do défice do sector externo em 1,4 p.p. – i.e., a melhoria do nosso saldo com o exterior – e de uma ligeira redução do superavit do sector empresarial de 0,2 p.p., o que resultou numa deterioração do superavit das famílias de 2,1 p.p. e numa redução de 3,5 p.p. da taxa de poupança.

No plano de estabilidade, o Governo prevê para os próximos anos sucessivas reduções do défice público, atingindo mesmo superavits a partir de 2020 e um incrível superavit de 1,3% do PIB em 2021. Nesse mesmo documento, prevê-se, de forma um pouco optimista, que em 2021 o défice do sector externo seja de -1,7% do PIB – portanto superavit de 1,7% da nossa economia – e que o saldo para o conjunto do sector privado português (famílias e sector empresarial) seja de 0,4% do PIB, uma redução de 3,0 p.p. comparando com os 3,4% do PIB verificados em 2016. Isto significa que para que o saldo das famílias em 2021 se mantenha nos atuais 0,8% do PIB, é necessário que o sector empresarial passe de um superavit de 2,6% do PIB em 2016 para um défice de -0,4% do PIB em 2021.

Será isto possível? Para responder a esta questão é necessário olhar separadamente para as duas componentes do sector empresarial. O sector financeiro tem historicamente apresentado saldos positivos (a única excepção foi em 2002 com -0,3% do PIB), sendo que em 2016 este foi de 2,2% e desde 2010 o valor médio foi 3,3%. O sector não financeiro apresentou saldos negativos até 2012, quando atingiu o seu maior nível de endividamento, 127% do PIB. Os saldos positivos verificados pelo sector não financeiro em 2013 (1,4% do PIB) e 2014 (1,2%) e próximos de zero em 2015 (-0,2%) e 2016 (0,4%) permitiram reduzir o seu endividamento para 105% do PIB no final de 2016, o que continua a ser dos mais elevados da área do euro (página 38 do mais recente relatório de estabilidade financeira do Banco de Portugal).

De referir que, nos dois últimos anos, a redução do endividamento se deveu principalmente ao crescimento nominal do PIB. O que isto significa é que, tendo em conta a tendência do sector financeiro para registar saldos francamente positivos, o saldo de -0,4% do PIB do sector empresarial – necessário para que em 2021 o saldo das famílias não se deteriore ainda mais – só será possível com um saldo francamente negativo do sector não financeiro. Por exemplo, assumindo que o saldo do sector financeiro se mantém em 2,2% do PIB em 2021, o saldo do sector não financeiro teria que passar dos actuais 0,4% do PIB para -2,6% em 2021. Esta evolução passaria obrigatoriamente pelo retomar de uma trajetória de aumento do endividamento do sector, o que, tendo em conta o ponto de partida, me parece, além de pouco desejável, muito difícil de acontecer.

Resumindo e concluindo. As reduções do défice previstas pelo Governo para os próximos anos, e assumindo o cenário optimista, também previsto pelo Governo, relativamente ao nosso saldo com o exterior, só não terão um impacto negativo nas poupanças das famílias se o sector empresarial não financeiro aumentar os seus já elevados níveis de endividamento.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.