A reação nacional à pandemia provocada pelo Covid-19 reflete de certo modo a normalidade do país: improviso, descoordenação, impreparação dos dirigentes, ausência de planeamento, comunicação deficiente, falta de transparência, etc.

Os acontecimentos que vivemos trazem-me à memória as tristemente célebres declarações proferidas pelo primeiro-ministro José Sócrates, em 2009, anunciando ufanamente a inexpugnabilidade da economia portuguesa face à crise económica e financeira que assolava a Europa. Era um problema dos outros.

Essa despreocupação repetiu-se. Há poucas semanas, a Directora-geral da Saúde afirmava “existir uma fraquíssima possibilidade [do coronavírus] se transmitir de pessoa para pessoa”, “a propagação não é uma hipótese a ser equacionada”, “não há grande probabilidade de chegar a Portugal”.

Não sendo preocupação não havia necessidade de precaver. E foi o que aconteceu, apesar de não se poder alegar desconhecimento, quando se começava a perceber a dimensão do problema na China. Reagiu-se tarde e a más horas. Quem estava ao volante mostrou falta de visão e de liderança, e comportou-se de forma amadora. Por seu lado, o Conselho Nacional de Saúde Pública revelou-se um organismo desnecessário, desfasado dos problemas.

Não nos esquecemos que há cerca de duas semanas, o seu porta-voz desvalorizava a gravidade do Covid-19 dizendo que era “menos perigoso que o da gripe” e que, mais recentemente, afirmou que “não se justificava o fecho de todas as escolas”. Por causa disso, não foram tomadas no momento correto algumas decisões cruciais, como seja o fecho dos estabelecimentos de ensino. Por outro lado, ainda se continua a entrar em Portugal sem qualquer controlo nos aeroportos, e neste ponto os Açores e a Madeira parecem querer dar o exemplo à “República” dormente.

As entidades oficiais ainda têm dúvidas sobre a necessidade de fechar as fronteiras (mesmo quando Espanha as fechou), e de declararem o Estado de Emergência. A forma descuidada como a propagação do Covid-19 foi abordada gorou a possibilidade de implementar as melhores práticas. É extraordinário tomar conhecimento, quando escrevia este texto, de notícias sobre o levantamento dos equipamentos de ventilação existentes no país. É longa a lista de exemplos da falta de antecipação e de planeamento.

Até ao momento não foram feitos pedidos às Forças Armadas. Curiosamente o ministro da Defesa Nacional não participou nas reuniões onde foram tomadas decisões importantes sobre a resposta nacional à crise e parece estar à margem da situação. O relatório das decisões do Conselho de Ministros restrito de 10 de março não faz menção à colaboração das Forças Armadas. Será que alguém estará a pensar no assunto?

Segundo os especialistas, estaremos apenas no início da pandemia. Mas apesar de não se ter atingido o pico da crise, é já evidente que o SNS não tem meios necessários para suprir as necessidades, e fazer face à crise sanitária sem precedentes que tem pela frente. Mais tarde ou mais cedo, as Forças Armadas serão chamadas a participar no esforço nacional.

Talvez fizesse sentido começar, desde já, a pensar como é que poderá ser maximizado o seu emprego, e como coordenar a sua atuação com os restantes atores, evitando improvisos. Trabalhando em antecipação, e prevendo a deterioração da situação, as Forças Armadas tomaram unilateralmente a decisão de convocar os militares dos Serviços de Saúde na situação de reserva para se apresentarem ao serviço. Muito mais há a fazer, mas qual é a diretiva?

Para além dos planos de contingência dos Ramos e da necessidade de estes garantirem a prontidão dos seus militares, as Forças Armadas dispõem de um leque variado de valências que podem ser utilizadas no combate à pandemia.

A contribuição das Forças Armadas para este esforço nacional não se restringe às limitadas capacidades existentes nos hospitais militares (camas e ventiladores móveis que podem ser disponibilizados para o SNS), e à desperdiçada capacidade produtiva do Laboratório Militar (utilizada de forma insuficiente). Como o Estado de Emergência parece ser incontornável, partilhamos algumas ideias sobre o que poderá ser a contribuição das Forças Armadas, dentro do quadro legal em vigor.

Segundo as notícias vindas a público, já antes da declaração de pandemia era notória a falta de camas nos hospitais públicos. As Forças Armadas dispõem de camas e instalações que podem ser utilizadas para alojar com dignidade pessoas em quarentena, e prestar-lhe apoio sanitário básico. Muito mais poderia ser feito se tivessem sido planeados e atribuídos os recursos adequados. Poderão ainda disponibilizar hospitais de campanha, tendas sanitárias, transportes e ambulâncias.

No caso da declaração do Estado de Emergência, em que serão impostas restrições de mobilidade aos cidadãos (controlo de entradas e saídas no país, movimentos de pessoas e mercadorias, recolher obrigatório), as Forças Armadas poderão apoiar as Forças de Segurança com patrulhas, tanto no controlo de fronteiras como em áreas urbanas, para assegurar o cumprimento das normas que limitam a liberdade de circulação, caso necessário, permitindo libertar as Forças de Segurança para outras tarefas. A estas tarefas junta-se o transporte aéreo e marítimo entre ilhas.

O drama causado por este vírus transporta-nos para uma questão de fundo, que se prende com o relacionamento das Forças Armadas com a sociedade, particularmente relevante em matéria de mitigação dos efeitos provocados por calamidades e pelas alterações climáticas. O papel das Forças Armadas no esforço nacional do combate ao Covid-19, sendo supletivo, poderá ser um contributo importante, se for devidamente planeado.

Tudo indica não existir um pensamento sobre o modo como o poder político as pretende empregar. Dentro da normalidade nacional, será feito tudo à última hora. Será mais um exercício de improvisos e expedientes. As Forças Armadas não devem ficar fora deste esforço nacional. Até ao momento ignoradas, são um recurso que o país não pode dispensar nem desperdiçar. Quanto mais cedo for pensada a sua utilização, mais eficaz será. Melhor seria ter começado a pensar ontem. Eu sei que é difícil.