O debate sobre as relações entre a Al Qaeda e os Talibãs nos dias de hoje, para além de aliciante, é um tema incontornável. Um eventual reconhecimento do novo poder em Cabul depende do modo como os talibãs respeitarem o compromisso que assumiram em 29 de fevereiro de 2020 com a Administração Trump, não permitindo que o território afegão sirva de apoio a organizações terroristas.

A opinião de muitos analistas continua colada aos acontecimentos de há 20 anos, como se nada tivesse, entretanto, ocorrido, quando os Talibãs albergaram no seu território Bin Laden e campos de treino da Al Qaeda, ligando-os indissociavelmente àquilo a que se convencionou chamar “War on Terror”. Importa perceber como evoluíram essas relações.

As divergências ideológicas entre a Al Qaeda e os Talibãs remontam à primeira metade da primeira década do século XXI. O objetivo último da Al Qaeda era “subverter a Ordem mundial baseada em Estados-nações e substituí-la pela Umma, uma comunidade de muçulmanos unidos através de uma autoridade política comum”. Ora, este objetivo estratégico encontrava-se muito distante daquele perseguido pelos talibãs, um grupo paroquial oriundo das madraças do Paquistão, que desejava apenas expulsar o invasor do território afegão e nele estabelecer um Emirato Islâmico, sem a ambição de participar ou envolver-se na Jiade Global.

Segundo os documentos encontrados em Abbottabad, o responsável pelos contactos e relações externas da Al Qaeda dava conta a Bin Laden em 2007, “da existência de forças no seio dos Talibãs que se distanciaram da Al Qaeda para evitar a acusação de conluio com o terrorismo.” Isto não significava que os talibãs tivessem alguma vez abdicado do seu objetivo de construir um Emirato Islâmico. Tinham-se tornado num grupo nacionalista, que exacerbava o nacionalismo afegão como forma de superar as rivalidades e preconceitos interétnicos existentes no país, e unir todos os muçulmanos contra o inimigo comum. O resultado desta estratégia ficou patente na recente tomada de poder pelos talibãs iniciada nas cidades do norte do país, onde os pashtuns não são maioria. Este projeto político era frontalmente contrário ao da Al Qaeda.

Essas divergências eram públicas. Quem seguisse os debates nos fóruns da internet na segunda metade da primeira década do século XXI, ter-se-ia apercebido disso. Já nessa altura os apoiantes da Al Qaeda lançavam ferozes ataques aos talibãs afegãos, acusando-os de se desviarem da Jiade Global. Os bloggers próximos da Al Qaeda sentiram-se ultrajados quando os talibãs manifestaram solidariedade com o Irão devido às sanções que lhe foram impostas pelo Conselho de segurança da ONU em dezembro de 2006 por causa do seu programa nuclear. Apesar de serem sunitas, os talibãs não tinham a postura confrontacional da Al Qaeda e do Estado Islâmico, especialmente deste último, relativamente ao Irão.

Outro ponto de discórdia prendia-se com a disponibilidade dos talibãs para entrarem em conversações com os EUA, algo inaceitável para a Al Qaeda irredentista quanto à possibilidade de cooperação com entidades que não partilhassem a mesma ideologia e que fossem contra a Jiade Global. Já era nessa altura evidente para a liderança talibã que a Al Qaeda se tinha transformado num transtorno. Contudo, as divergências estratégicas entre as duas organizações não foram obstáculo à colaboração a nível tático em situações muito concretas e localizadas.

Por irónico que possa parecer, quem está neste momento particularmente preocupado com o terrorismo no Afeganistão são os talibãs, acossados pelos Estado-islâmico Khorasan, uma filial do Estado Islâmico na região, um inimigo declarado, como confirmaram os atentados de 26 de agosto. Na lista das organizações terroristas que já utilizavam o território afegão encontrava-se o Partido Islâmico do Turquestão, de onde lança ataques em território chinês habitado maioritariamente por uigures, a minoria chinesa muçulmana.

Nunca a comunidade internacional teve tanta alavancagem sobre os talibãs como agora para os pressionar a distanciarem-se da Al Qaeda. A não o fazerem, o reconhecimento internacional ficará irremediavelmente comprometido, com as inerentes consequências.

Os esforços da comunidade internacional na luta contra o terrorismo na região devem antes orientar-se para ajudar o Paquistão a livrar-se desse flagelo, se os serviços de intelligence paquistaneses deixarem. Convém recordar que entre 2002 e 2018, os EUA financiaram o Paquistão com 14 mil milhões de dólares para combater o terrorismo. Sem se rever esta política será difícil um combate consequente ao terrorismo.