Vamos de férias com receio de que uma greve, de um pequeno grupo profissional, nos cause o maior dos transtornos, a todos nós, que nada temos que ver com o motivo da acção. Por causa de umas centenas, se tanto, são milhões que poderão ver arruinado o seu inegável direito ao descanso. Há quem diga que isto da greve devia ser regulamentado, que nem tudo é aceitável, é um poder desproporcionado, mas ouvindo e lendo o que se diz nesse sentido era bom não permitir que a irritação motivada pelo desconforto desta greve dê azo às razões erradas.

Há actividades que se pautam pelo regime da urgência e que não podem esperar pelo tempo da negociação. Por isso definem-se serviços mínimos, com ampla capacidade governamental de definir a sua latitude. E se estes não forem cumpridos, com as consequências legais que daí possam seguir-se para quem incumpriu, o Governo dispõe de instrumentos legais que poderão ir, presume-se, até à requisição civil, mobilização de forças armadas, tudo o necessário para que a greve não ponha em perigo o que à partida nenhuma greve deve poder pôr em perigo, e o cumprimento do que na Constituição se chama de “necessidades sociais impreteríveis”.

Mas, fora isso, não há razões para contestar o direito à greve porque os seus efeitos são maiores ou nem por isso. Por esse caminho, não haja ilusões: não se estará a fazer mais do que a condicionar o direito à greve pelos seus efeitos e assim a torná-la inócua, um protesto que só prejudicará o salário do grevista e, eventualmente, numa escassíssima medida doravante controlável, quem o emprega.

A proporcionalidade dos efeitos é um cavalo de Troia inaceitável que mata a força de uma greve através da encenação do fantasma da ameaça do caos, devidamente suportada por meios de comunicação dispostos a incendiar o pânico. A única acção que se deve regular por um critério de proporcionalidade é a definição de serviços mínimos. E essa definição cabe ao Governo, com o maior tacto possível, garantindo os serviços mínimos, sem com isso minimizar o impacto que se espera de uma greve a ponto de constituir um boicote.

À luz disto, e mesmo se animado pelas melhores intenções, foi infeliz o Presidente da República ter dito que “é uma pena que, havendo boas razões a defender, estas são sacrificadas pelo excesso de meios utilizados”. O excesso é simplesmente haver um meio chamado greve. E não está melhor o primeiro-ministro se se agasta e se queixa de “revolta e incompreensão”. Já Pedro Nuno Santos, que esteve bem na greve da Páscoa, volta a estar bem se, enquanto governante, primeiro, apela aos sindicatos que voltem à mesa de negociações e se, segundo, garante que o Governo estará “à altura das dificuldades que uma greve como esta representa”. Mas estar à altura não pode significar boicotar uma greve, por impopular que seja, maximizando serviços mínimos a ponto de obrigar todos os grevistas a trabalhar.

Podemos, obviamente, discordar de uma greve, da justiça social ou económica da sua causa, e nesse caso devemos mesmo tomar posição – porque uma greve é sempre um acto político que deve ser recebido politicamente, seja por cidadãos seja por partidos, sectores da sociedade, etc. Mas também esta não é uma razão suficiente para contestar o direito à greve. Discordar da motivação de uma greve é uma coisa, discordar do direito que lhe assiste é outra, bem diferente.

Faz sentido ter todas estas ressalvas em mente quando se ouve do Governo e do Presidente da República juízos contundentes, a baralhar alhos com bugalhos, sobre a greve na iminência de ter lugar nos próximos dias, dos motoristas de transporte de matérias perigosas e dos transportes de mercadorias em geral. O debate público em torno desta greve é, aliás, um bom pretexto para reflectir sobre as virtudes do direito à greve, por alguma razão direito pouco consentido nos regimes com escassas liberdades, mesmo que se digam pelos trabalhadores, e apanágio das democracias mais conseguidas, entre as quais a portuguesa não faz má figura.

Começo por vários mitos sobre o direito à greve que devem ser desfeitos. Primeiro, que as greves que causam transtorno a outros são ilegítimas; segundo, que as greves de grupos profissionais pouco numerosos são pouco justificadas; terceiro, que as greves não têm sacrifícios para os grevistas, apenas para as entidades empregadoras e o resto da sociedade, em maior ou menor proporção para uns e outros; quarto, que o tempo das greves, a era industrial, já passou.

Todas estas ideias laboram sobre algum tipo de equívoco e todas visam questionar o direito à greve. Fazem mal. O impacto sobre a sociedade é, claro, uma contingência, que pode variar muito entre áreas profissionais que façam greve. “Homens do lixo” perturbam o quotidiano das cidades ao fim de uns dias, a ponto de se tornar insuportável o cheiro nas ruas. Funcionários dos correios provocam atrasos em inúmeros serviços postais, por exemplo contas a pagar que chegam depois do prazo de pagamento, em seguida filas insuportáveis em balcões impreparados para um volume enorme de clientes.

Trabalhadores da Autoeuropa põem em risco a viabilidade da terceira maior exportadora nacional, só ela responsável por um ponto percentual do PIB nacional. Professores perturbam o quotidiano de filhos e, portanto, dão uma dor de cabeça aos respectivos pais, que se transforma em ataque de pânico se a luta se passar em período de exames. Transportadores de matérias perigosas perturbam tudo e todos porque o que transportam é como o sangue que mantém o organismo da sociedade moderna industrializada e de consumo a funcionar. Se for em período de férias parece perfídia.

Mas, o que parece malvadez pode não ser mais do que racionalidade a comandar. Faz sentido maximizar os estragos feitos por uma greve para assim maximizar as hipóteses de uma solução a breve prazo, evitando a agonia do seu prolongamento. É bom que se perceba que a greve é um choque de forças que, desejavelmente de forma pacífica, contrapõe à necessidade dos trabalhadores terem um salário para viverem a necessidade de o seu trabalho ter lugar. Este ser um choque desejavelmente pacífico não deve significar que seja um choque pouco sério em que, de igual para igual, empregados opõem a empregadores a sua falta de produção para serem valorizados na proporção justa que essa falta mostra.

Por outro lado, é parte incontornável do sentido de uma greve, qualquer greve, chegar à sociedade porque faz parte da justificação última da greve uma percepção social da comunidade. Ficou para a história a greve, em 1824, das teceleiras de Pawtucket, cidade de Rhode Island. Por ter sido a primeira greve de mulheres nos Estados Unidos, mas também pelo envolvimento solidário da comunidade. E eram apenas uma centena de empregadas.

No mundo marcadamente individualista de hoje este tipo de co-envolvimento é difícil de perceber, sobretudo porque o individualismo mais do que uma escolha é um mandamento e é a essa luz que tudo o mais acaba por ser avaliado. Simplesmente, este individualismo é, em si mesmo, um problema social, muito mais do que uma condição a aceitar sem discussão. Nos anos 80, Ronald Reagan esfrangalhou muito do que era o direito à greve nos Estados Unidos quando decidiu que controladores aéreos que não retomassem o trabalho eram substituídos por novos. Já estávamos noutra era.

A greve interrompe a produção por um motivo provavelmente relacionado com remuneração abaixo do socialmente justo ou com condições de trabalho pouco adequadas. Mas a razoabilidade desse motivo não pode ser aferida fora do contexto social, que dá o padrão e o respaldo do justo. Por isso, a greve é sempre um apelo à comunidade e nesse sentido justifica-se a sua chamada de atenção através de um transtorno. De outro modo, a reivindicação será ignorada, o que é tanto mais provável num contexto social individualista que pode ser descrito pelo princípio faz pela tua vida mas não me transtornes, que é bem a versão abastardada que muito neoliberalismo tem do conceito honrado de liberdade negativa. O mito aqui é achar-se que a sociedade não deva ser incomodada quando nela haja quem se sinta injustamente tratado.

Outro mito é achar-se a desregulação da greve um mal. A greve é um recurso último, constitucionalmente consagrado, sem que estejam explicitados motivos legítimos e motivos ilegítimos. Não é por acaso, nem por desleixo legislador. No texto da lei fundamental lê-se: “Compete aos trabalhadores definir o âmbito de interesses a defender através da greve, não podendo a lei limitar esse âmbito” (n.º 2 do Art.º 57). E é importante que assim continue, pois, enquanto recurso último, há um pano de fundo que é ao mesmo tempo de prudência constitucional, porque realmente não sabemos listar que motivos justos poderão desencadear um movimento de greve, e de confiança, porque acreditamos que os envolvidos e a comunidade em que estão inseridos saberão avaliar da legitimidade da greve.

O que muitas vezes se diz da ética, que cabe ao bom senso regular-se, em vez de o legislar, aplica-se, provavelmente com muito mais propriedade, a um recurso último como a greve. É uma má ideia propor a sua regulação, sobretudo para diminuir a sua força. Seria diluir um dos instrumentos mais pacíficos de ser forte contra forças que de outra forma podem ser esmagadoras. Curiosamente, aqueles que mais querem a regulação da greve são os que, em tudo o resto, se dão bem com desregulação.

Há também quem ache que o tempo das greves já passou porque passámos a uma era pós-industrial e assim, tal como sucede com o sindicalismo e os vínculos laborais do passado, também a prática da greve teria os dias contados.

É verdade que o direito à greve é filho da era industrial. Houve, diz-se, greves no tempo da  construção das pirâmides egípcias, e não custa crer que, ao longo da história, quem trabalhou para outrem e não fosse um escravo se terá lembrado de recusar-se a trabalhar enquanto não visse satisfeitas condições mínimas, sobretudo se dispunha da força de se organizar colectivamente com outros nas mesmas circunstâncias. Mesmo escravos poderão ter feito as suas greves, naturalmente com a penalização do chicote e do horizonte provável da morte violenta. Mas, precisamente, uma coisa é ter havido greves na história humana do trabalho assalariado, servo ou escravo, outra é o reconhecimento histórico do seu direito. E esse é filho da era industrial, que precisa de ser mais bem compreendido.

Finalmente, é pouco contestável que à medida que se avança para sociedades menos dependentes do trabalho humano ficam em causa as bases que conferem força à acção grevista. Simplesmente, dito isto, é também preciso reconhecer que, como nunca, a industrialização migrou da indústria para todos os aspectos da vida activa.

Hoje, não há regimes de funcionamento de coisa e de pessoas que não estejam conformados a ser regimes de produção. Por isso, longe de a pensar como um vestígio do passado industrial e sindical, faz sentido começar-se a pensar a defesa de direitos de greve muito além da sua base laboral original, para o estender, sem perda de força, a domínios não laborais mas ainda ligados, de forma igualmente essencial, à produção económica. A greve ao consumo não é exactamente uma greve para nenhum jurista hoje, mas esperemos não ver o dia em que não nos queiram impedir de fazer uma greve ao consumo por causa dos seus efeitos.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.