Olá a todos.

O meu nome é Leandro, mas sou conhecido na minha zona como “Puto Lilas”.

Vivo num dos bairros da periferia de Lisboa. Até poderia dizer qual é, mas se, como eu, conhecer esses bairros, vai perceber que o nome é irrelevante, dadas as semelhanças entre todos eles.

Eu, tal como a minha comunidade, tenho muitos rótulos, simplisticamente usados, mas raramente escalpelizados.

Vou abstrair-me deles para lhe dizer, sumariamente, de onde venho:

  • Eu faço parte da população de Lisboa que vive em habitações sobrelotadas e severamente privadas de condições (~13% e ~6%, respetivamente, INE, 2019).
  • Eu faço parte dos cerca de 22% de portugueses em risco de pobreza e exclusão social (INE, 2019).
  • Eu faço parte das famílias cujas mães e pais têm empregos informais e altamente precários, por exemplo, nas limpezas e na construção civil.
  • Eu faço parte dos bairros, das classes sociais e dos agregados familiares que mais se correlacionam com taxas de abandono escolar e com a incapacidade de aceder ao ensino superior.
  • Eu faço parte das comunidades onde a violência está dentro de casa (com elevados índices de violência doméstica) e a criminalidade a cada esquina das ruas.

A minha realidade reforça positiva e diariamente tudo aquilo de que a sociedade me acusa: “não queres estudar!”, “não queres trabalhar!”, “tens comportamentos desviantes!”.

É uma relação causa-efeito e um círculo vicioso que perpetua a falta de esperança a cada geração que vem de onde eu venho.

Se eu fosse uma aposta, ninguém apostaria no meu sucesso: as minhas probabilidades tendem para o zero.

Eu queria estudar, mas, apesar do acesso à escola pública, as aulas foram apenas uma parte do meu dia, que acabava invariavelmente a partilhar a rua com os mais velhos e, quando conseguia estar em casa ao mesmo tempo que os meus pais, a uma falta de apoio em matéria letiva. Não tiveram culpa, também eles passaram pelo mesmo que eu.

Ao menos não passei por este contexto de ensino à distância onde se junta a falta de apoio à privação de condições acima referida.

Eu queria trabalhar, e trabalho, mas a falta de sucesso escolar foi-me condenando a trabalhos iguais ou piores aos que os meus pais tiveram.

Hoje tenho algumas alternativas à caixa de supermercado: posso agarrar numa moto e entregar refeições porta a porta, pode ser que assim me chamem empreendedor.

Menos sorte têm as mulheres que costumava ver todos os dias a saírem de manhã para limpar casas e que hoje (“Deus me livre de ter uma pessoa de um bairro social em casa, ainda traz Covid!”) são um dos custos a abater pelas famílias em teletrabalho (que engraçada esta nova expressão).

Restam os escritórios, que também elas limpavam à noite, mas tenho ouvido dizer que cada vez serão menos utilizados e que, por consequência, terão menos necessidade de ser limpos.

Eu não queria ter comportamentos desviantes. Eu não queria estar confortável com a criminalidade, eu não queria falar alto e não queria entrar em autocarros a ouvir música com o meu telemóvel, eu não queria ser misógino, e tudo aquilo de que me podem acusar.

Eu até queria falar e escrever melhor, comentar política e economia, emitir opiniões sobre a sociedade, mas sabe que mais? As minhas referências e o meu mundo são um bocado diferentes do seu: a mim ninguém me ensinou a escolher, filtrar e criticar informação e essa é bem capaz de ser a razão pela qual, ao contrário de si, não estou neste momento a ler uma coluna de opinião n’O Jornal Económico. Eu e a minha comunidade só somos notícia quando há rusgas ou violência.

Não obstante, às vezes até vou lendo umas coisas no Facebook, mas pelo que me dizem, há por lá muitas notícias falsas que tendem a desinformar e ser utilizadas para manipular pessoas como eu.

Há quem me diga que é falta de esforço e de mérito, que com trabalho tudo se consegue, como se não vivesse rodeado de pessoas que trabalham de sol a sol.

Eu não quero ser o vosso rótulo, ninguém quer, mas por vezes é difícil não o ser quando ele, e o próprio destino, já foram escritos: é uma questão de probabilidades.

Assinado, Puto Lilas.

Puto Lilas é uma personagem fictícia criada por Gonçalo dos Santos Rodrigues