A propósito da legislação aprovada no Orçamento Suplementar na Assembleia da República, obrigando a uma partilha, entre lojistas e proprietários dos centros comerciais, dos custos/prejuízos ocorridos pelo encerramento de grande parte das actividades (só ficaram a funcionar os supermercados e lojas de electrodomésticos), foi por estes desencadeada uma campanha de desinformação pública e de pressão e chantagem sobre os Órgãos de Soberania.

Uma operação política e mediática verdadeiramente notável! Pela argumentação terrorista, pelas barbaridades e dislates proferidos, pela dramaticidade das cartas abertas aos responsáveis políticos postos perante um caso de vida ou de morte. É o fim do investimento estrangeiro em Portugal. A boa-fé contratual posta em causa, coisa nunca vista na Europa. A reputação do país. “Hipoteca toda a cadeia de valor desta indústria (?!)…”. “Uma má notícia para os Centros Comerciais, uma péssima notícia para o país”.

Que nova calamidade nos caía na cabeça! Nem a última greve na Autoeuropa tinha atingido tais decibéis. Até dava vontade de chorar… isto se não se tratasse só de umas décimas ou centésimas de pontos percentuais dos rendimentos desses “investidores, seguradoras, fundos imobiliários e de pensões estrangeiros”.

A comunicação social da arte não hesitou: “PCP beneficia bancos com suspensão de rendas” (quem diria?!) titulava a toda a largura da primeira página o “Jornal de Negócios” (08JUL20). Mais duas páginas no interior e o Editorial do dia seguinte. O Caderno Económico do “Expresso” (11JUL20), na secção do Imobiliário (está claro!): “Guerra das rendas «incendeia» o sector e afasta investidores”; “…o PCP está a favorecer as cadeias de lojas internacionais. O pequeno comércio local continuará em manifesta desvantagem face às lojas dos centros comerciais”, diz o “Observador” (10JUL20).

Nem o sereno comunicado da CCP e da AHRESP, considerando “positivo” o regime aprovado, fez arriar os pendões… Houve até um simplício que descobriu que tal legislação era uma inaceitável e desleal concorrência com o comércio local…[1]

O grande argumento era a “alteração do contrato” entre dois privados pelo Estado. O Estado a interpor-se entre a livre contratação de privados? Podia lá ser. Nem as leis, nem a Constituição, nem os Tratados Europeus permitem tal coisa. Quem sabe se mesmo os 10 Mandamentos… Muito grave, gravíssimo: violação da “livre iniciativa económica e do direito de propriedade privada”.

Ora, desde o início da pandemia que o Estado vinha violando por pensamentos, palavras e obras tais “sagrados princípios”. Com uma argumentação e justificação suplementar e fortíssima: a emergência da pandemia. Até deu para declarar “o estado de emergência”. O primeiro contrato entre privados que foi “violado” legalmente pelo Governo/Estado foi entre patrões e trabalhadores: suspensão unilateral do contrato de trabalho ao abrigo legal do lay-off! E com uma argumentação (trauliteira) do Governo: repartição dos custos dos impactos da pandemia por todos. (Como se um trabalhador ao ficar sem ⅓ do salário fosse equivalente em consequências ao empregador pagar o mesmo terço!).

Desde o início do estado de emergência, milhares de pequenos empresários viram os seus negócios, e trabalhadores por conta própria o seu trabalho, suspensos por lei da República pondo em causa os seus contratos formais e informais com terceiros. Sem o Estado assumir sequer, na maioria dos casos, a socialização de parte desses custos que punham em causa a sua própria sobrevivência e das suas famílias.

Depois de Março veio o Estado português, via Assembleia da República, dar à luz a Lei 4-C/2020 de 6 de Abril e a Lei 17/2020 de 29 de Maio que altera aquela, pondo em causa, alterando os contratos entre senhorios e inquilinos, quer no arrendamento habitacional quer no arrendamento não habitacional, isto é comercial, sem qualquer contestação pública da APCC – Associação Portuguesa de Centros Comerciais ou da APPII – Associação Portuguesa dos Promotores e Investidores Imobiliários.

Mas alguém contesta o direito soberano de um Estado de direito democrático em alterar a todo o momento, em circunstâncias determinadas, com conta e medida e bom senso, no quadro da sua Constituição, com ou sem pandemia, a regulamentação e regulação dos contratos, entre (interesses e partes económicos) privados, entre o Estado e privados, etc.? O que é que lhes deu agora?!

O que lhes deu foi que há muito vivem num estado de excepção, um Estado sem lei relativamente ao arrendamento/locação dos espaços dos centros comerciais aos seus inquilinos, vigorando um estatuto ilegítimo e alicerçado nas posições de força do poder económico monopolista dos proprietários dos centros comerciais.

O que na rua ao lado se chama “arrendamento de uma loja”, obedecendo às leis da República portuguesa, denomina-se no Centro Comercial “contrato de utilização de loja”, “não tipificado na lei” submetido à “lei” imposta pela Administração do Centro, sob o subterfúgio semântico de que estamos perante uma “prestação de serviços” e não uma “locação de espaço físico” para exercício de actividade comercial/retalhista!

Ora, o que pretendiam e pretendem era que o estado de excepção, em vigor antes, durante e depois da pandemia, continuasse. O que um Estado de direito, como se julga que é o Estado português, tem de fazer é eliminar a excepção. Que nunca devia ter sido permitida. E que deverá acabar, com ou sem pandemia.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

[1] Observador, “Lobo em pele de cordeiro”, 10JUL20, Ricardo G. Cerqueira – o simplício questiona “a razão para que o pequeno comércio tradicional de rua não tenha sido também abrangido pelo diploma?”. Correcto, mas devia perguntar a quem lhe mandou escrever o artigo ou ao PS que se absteve e ao PSD que votou a favor dessa norma no Orçamento Suplementar, e que votaram contra as propostas do PCP de regime idêntico para o pequeno comércio tradicional.