O século XXI tem sido profícuo na redefinição da geopolítica internacional. O 11 de Setembro terá sido talvez o mais gritante abanão do mundo ocidental, desconstruindo símbolos de poder económico e militar e forçando o repensar de equilíbrios internacionais.

Os alicerces europeus foram abalados por desenvolvimentos como a assimetria da crise de dívida soberana nos países da zona euro, os fenómenos migratórios com origem no Norte de África, ou o mais recente Brexit. E, claro, o crescimento económico e militar da China e sua afirmação pelos cinco continentes é a cereja no topo do bolo, intimidando as grandes potências mundiais que a precederam no desempenho deste papel.

AUKUS, o novo pacto militar entre a Austrália, o Reino Unido e os EUA, foi o último estremeção, assumindo uma dimensão política e militar a que nos desabituamos de assistir. Não deixa de ser curioso que seja anunciado pelos EUA, poucos dias depois de se assinalarem duas décadas daquele que será porventura o episódio mais tenebroso da sua história.

Esta parceria estratégica é, quiçá, o prelúdio de novas formas de integração entre países, assente em cooperação e, como tal, à primeira vista, não exigindo perda de soberania, especialmente repudiada pelos ingleses. Não é de estranhar também que, em algumas vertentes, se possam associar ao acordo países como o Canadá, a Nova Zelândia, a Índia e o Japão, num certo revivalismo da Commonwealth, numa condição de projeto anglo-saxónico pós-Brexit.

E que objetivos poderão ter levado parceiros, quase naturais, a formarem uma aliança, num contexto em que os EUA são visados pelo seu comportamento no Afeganistão? Evidentemente, um novo inimigo comum – a China. O acordo visa travar o crescimento do poderio chinês, nomeadamente o seu avanço militar numa região por onde passam importantes rotas marítimas e, por arrasto, a sua importância económica.

O anúncio de uma parceria militar, numa conjuntura em que o chavão é a transição digital, assentará a cooperação em áreas como a segurança, a defesa, a tecnologia e a ciência. O novo palco das relações e conflitos mundiais será agora a região do Indo-Pacífico, as armas serão a inteligência artificial, a cibersegurança e a tecnologia quântica. Resta saber, se tal partilha poderá alguma vez reverter-se e se as questões de soberania não virão a assumir assim imprevisíveis e delicados contornos.

Sendo a diplomacia outro dos alvos desta aliança, os três AUKUS pareceram ter um entendimento limitado da mesma logo na forma como anunciaram o seu pacto, o que teve o condão de enfurecer a França. Os EUA irão ceder tecnologia nuclear para renovar a frota de submarinos australianos, pondo em causa um contrato de milhares de milhões de euros, previamente acordado entre australianos e franceses.

E como reagiu a visada menos direta, a débil União Europeia, cujos dirigentes vagueiam distraídos na sua torre de marfim? Engoliu perplexa e de uma assentada as demonstrações de unilateralismo americano, de reforço do Brexit e de ultrapassagem da NATO, enquanto tomou consciência que os interesses estratégicos franceses vão muito para lá das suas fronteiras.

Só resta repisar no óbvio: os choques exógenos tiveram, no passado, importantes efeitos aglutinadores, originando e/ou reforçando as instituições europeias, mas a memória parece ser curta e a nova política tem sobretudo realçado as divergências internas. A União não sobreviverá sem uma verdadeira política externa. É caso para perguntar: é desta, Europa?