Aurélia de Sousa, a mulher artista na vanguarda da sua época, levou uma vida pouco convencional. E a sua obra só poderia plasmar essa singularidade. O reconhecimento e prestígio não chegaram em vida, mas no centenário da sua morte procura-se, de uma vez por todas, colmatar essa lacuna com a publicação de um ‘catálogo Raisonné’ – num esforço conjunto do Museu Nacional Soares dos Reis, Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova e a Universidade Católica – que vai integrar toda a obra da artista, e que será disponibilizado em versão impressa e ebook.

O projeto teve início em 2020 e está a ser conduzido pela historiadora de arte Raquel Henriques da Silva, que dirigiu o Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado e o antigo Instituto Português dos Museus.

Uma mulher dona do seu nariz

Mas quem foi esta mulher? Maria Aurélia Martins de Sousa nasceu a 13 de junho de 1866, na cidade de Valparaíso, no Chile. Cresceu numa família de emigrantes neste país da América do Sul, que aí procuraram melhores condições de vida. O regresso a Portugal deu-se depois de o pai ter feito fortuna nas obras dos caminhos-de-ferro chilenos. Passaram a viver no Porto, junto às águas do Douro, na zona de Campanhã.

© Santo António, Aurélia de Sousa, MNSR

Cresce numa quinta, a Quinta da China, e num ambiente essencialmente feminino desde a morte do pai, em 1875, quando a mãe fica com a tutela das suas seis filhas. Educada sob os preceitos de uma família tradicional burguesa, Aurélia mostrava grande apetência para as artes. A destreza para o lápis e para o pincel era particularmente auspiciosa, ao ponto de o seu professor de pintura e desenho, Caetano Moreira da Costa Lima, dizer que nada mais tinha para lhe ensinar.

Aos 27 anos, decide matricular-se na Academia Portuense de Belas-Artes, embora sem o aval da sua mãe. Aurélia crescera dona do seu nariz e, tal como escolheu frequentar a Academia, também depressa concluiu que não a satisfazia. Desiludida com o curso, parte para Paris, em 1899, para frequentar a Academia Julian, onde as mulheres só dois anos antes haviam começado a ser admitidas.

Ao contrário do destino traçado para as mulheres do seu tempo, Aurélia de Sousa nunca casou nem teve filhos. Tal como nunca regressou a Valparaíso, muito embora não tenha abdicado da nacionalidade chilena. À pintura juntou outra paixão, a fotografia, que a experimentou enquanto prática artística e que usou como base de trabalho nas suas pinturas. Na tradição do chamado “retrato de aparato”, vestiu-se de Santo António e usou a fotografia para encenar um autorretrato inovador e desconcertante.

O “Autorretrato” que pintou por volta de 1900 [imagem em destaque], e que faz parte da coleção do Museu Nacional Soares dos Reis, é uma das obras de referência da arte portuguesa na viragem dos dois séculos. Grande parte da sua obra integra, aliás, o núcleo museológico do Soares dos Reis, mas também do Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, em Lisboa, e ainda, no Porto, a Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio, sobrinha da artista.