Suponho estarmos a assistir a uma das maiores encenações político-mediáticas dos últimos anos com a activíssima colaboração dessa verdadeira geringonça que junta o Governo (e os seus múltiplos “spins” informativos) e boa parte da comunicação social e dos seus opinantes.

Não me recordo de ter lido ou escutado sobre a “crise da demissão do Governo” qualquer texto de opinião, editorial ou “ bate-papo” rádio-televisivo que não conclua invariavelmente da mesma forma “Bravo António Costa!”, como de forma patética Vicente Jorge Silva sintetizou no “Público”. Segundo li, a decisão de António Costa visaria antecipar as eleições para Julho, inverter a tendência declinante do PS nas Europeias e encostar a “direita” à ideia de despesismo. Mas, para obter essas aparentes vantagens, o enredo deveria ser consistente e os efeitos duradouros. Em não o sendo, a estratégia corre o risco de sucumbir.

Como já muitos entenderam, não há um pingo de sentido de Estado ou de responsabilidade político-económica na decisão do PS. É tudo do domínio da “ táctica política” e assim deve ser analisado. Vejamos pois como a tal “táctica” só podia dar o resultado que deu, ou seja uma mão-cheia de nada e outra de coisa nenhuma. E provavelmente virar-se contra os “aprendizes de feiticeiros”…

Pese embora a manifesta incompetência como o assunto da recuperação do tempo dos professores foi tratado na AR por todos, mas em particular pelo PSD e CDS, a verdade é que essa incompetência anulou boa parte dos efeitos pretendidos pelo primeiro-ministro.

Explico-me melhor. O texto que terá sido aprovado pela “traquitana” – todos menos o PS, na feliz expressão de Carlos Vaz Marques – é confuso nos seus contornos finais e nas intenções dos vários partidos. Ou seja, o que se sabe (no momento em que escrevo este texto) é que terá existido consenso para consagrar a reposição dos direitos de progressão na carreira dos professores e respectivos retroactivos salariais durante nove anos (e tal), mas não existiu acordo acerca do quando e como isso se faria.

Ora, nesse confuso contexto, Rio e Cristas vieram agora dizer que a versão final do diploma não contará com o apoio do PSD e CDS. Como o texto final não contemplará aquela limitação de que o pagamento integral dos retroactivos depende da evolução económica do país (porque PCP, BE e o próprio PS, coerentemente, a isso se opuseram), PSD e CDS estarão à vontade para votar contra e chumbar a norma no acto final. Costa deixará de poder utilizar o argumento para se demitir e tudo ficará na mesma (ou talvez pior para as expectativas dos professores).

No fim ficará apenas a sensação de uma crise artificial. Mais artificial ainda se nos recordarmos que, em 2017, o grupo parlamentar do PS votou favoravelmente uma resolução em que recomendava ao Governo a contagem integral do tempo de serviço de todos os  funcionários públicos (e portanto dos professores), e nessa ocasião PSD e CDS abstiveram-se. É claro que quando for chumbada a norma, o coro de  “fazedores de opinião” que se esfarrapam para dizer cada um mais alto que o outro que o nosso Primeiro é um “génio da política” e que “sabe mais a dormir que todos os outros acordados”, sustentarão que Rio e Cristas são troca-tintas e darão o dito pelo não dito.

Mas um módico de verdade não autoriza tal conclusão: ainda que a posição de Rio, em concreto, possa ser criticada, entre outras razões por contrariar a lógica de contenção e rigor orçamental de Passos Coelho (e eu partilho deste ponto de vista), o certo é que  o presidente do PSD anda há meses a dizer que os professores têm direitos (de nove anos e tal) que devem ser formalmente consagrados e efectivamente ressarcidos… quando houver condições económicas para isso (e já agora para os restantes funcionários nas mesmas condições). Nesta história reconheça-se que PSD e CDS também não saem bem, mas a iniciativa táctica é do Governo e não da Oposição.

A verdade é que um Governo que não se demitiu quando morreram nos fogos mais de uma centena de portugueses, que não se demitiu após as trapalhadas de Tancos, só pode utilizar a demissão fora do seu exacto contexto constitucional e para obter ganhos político-eleitorais. Mas mesmo para isso seria necessário um pouco mais de perspicácia e sobretudo que o enredo que fundamentou a movimentação “táctica” resistisse à prova dos factos, o que não acontece.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.