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Biden poderá declarar emergência de saúde se Supremo revogar direito ao aborto

Em declarações à Lusa, o docente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Luís Menezes Vale interpreta o facto de o Supremo Tribunal norte-americano se preparar para revogar o direito ao aborto à luz da jurisprudência do juiz Samuel Alito, responsável por assinar o projeto do Supremo que indica que uma maioria dos magistrados é favorável à revogação da norma que protege o direito ao aborto.
15 Maio 2022, 11h10

O professor de Direito Luís Menezes Vale acredita que o Supremo Tribunal norte-americano revogará o direito ao aborto e salienta que o executivo poderá declarar uma emergência de saúde pública para tentar contornar a situação no imediato.

Em declarações à Lusa, o docente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra interpreta o facto de o Supremo Tribunal norte-americano se preparar para revogar o direito ao aborto à luz da jurisprudência do juiz Samuel Alito, responsável por assinar o projeto do Supremo que indica que uma maioria dos magistrados é favorável à revogação da norma que protege o direito ao aborto.

“O documento que foi vazado é um esboço daquilo que virá a ser a decisão. Normalmente é designado um relator, um juiz que vai redigir a decisão e os outros juízes posicionam-se posteriormente relativamente àquela posição. Votam e podem declarar se a opinião deles concorre ao mesmo sentido ou se dissente dela. As famosas ‘concurrence and dissent opinions’. Portanto, o que supostamente terá vindo ao público é uma versão ainda não final do texto e que servirá de base à decisão”, explicou Vale.

Contudo, apesar de salientar que ainda pode haver uma alteração e o Tribunal não decida no sentido de acabar com o direito constitucional ao aborto, o professor universitário destaca que o “texto já está muito acabado e que, a menos que por discussão com os outros magistrados haja alterações, o texto vazado permite prefigurar o que será a decisão final”.

“Eu estou convencido que esta é a decisão que vai passar”, avalia Luís Menezes Vale, acrescentando que essa eventual decisão obrigará a que as sustentações pró-aborto sejam repensadas.

O direito ao aborto foi estabelecido no caso histórico de 1973 conhecido como ‘Roe v. Wade’, em que foi decidido que as mulheres grávidas têm o direito constitucional de interromper a gravidez até ao ponto de viabilidade fetal, ou seja, a partir do momento em que o feto pode sobreviver fora do útero, que ocorre geralmente em torno de 24 semanas de gestação, mas o entendimento varia de estado para estado.

Luís Menezes Vale??????? sublinha que apesar de ser um direito constitucional, ele não está descrito na Constituição norte-americana.

“O que acontece é que este direito não está consagrado expressamente na Constituição. Em parte alguma se diz que há o direito ao aborto, como em parte alguma se diz que há o direito ao casamento de pessoas do mesmo sexo, por exemplo. O que está previsto na 14.ª emenda é o direito à cidadania e à igualdade. (…) Então, no âmbito do devido processo legal, os juízes foram discernindo um conjunto de conteúdos que não estão expressos na Constituição. Temos de perceber que a Constituição norte-americana é pequena, muito exígua, e também antiga, tem 200 anos e, portanto, só através de um trabalho de interpretação é que foi sendo possível adaptar um pouco a Constituição à realidade”, explicou.

E foi precisamente através de uma construção e interpretação da Constituição que se chegou ao caso “Roe V. Wade”.

“Durante muito tempo a interrupção da gravidez era pura e simplesmente punida como crime. Até que surgiu esse caso, ‘Roe V. Wade’, muito polémico, que foi uma viragem de 180 graus. O tribunal reconheceu que a decisão de ter ou não um filho era tão íntimo, era uma questão tão importante para a mulher, que não devia ser objeto de uma regulamentação demasiado intrusiva por parte dos estados”, detalhou.

Há assim um direito constitucional, baseado na 14.ª emenda, a uma zona de privacidade da mulher nesta matéria, que a protege contra regulações da gestação, da gravidez e da interrupção que sejam excessivas.

De acordo com o especialista, como a Constituição norte-americana é muito difícil de rever e muito difícil de alterar, há sempre a suspeita de que se o Supremo Tribunal se expandir demasiado na interpretação que faz da Constituição, pode estar a intrometer-se num domínio que pertence ao Poder Legislativo. Ou seja, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos atua apenas para definir limites, sendo que a iniciativa na atuação Constitucional, na dinamização da vida pública, pertence ao Poder Legislativo.

Quando a vontade da maioria, expressa pelo Legislativo, põe em causa alguns direitos fundamentais, o Supremo Tribunal aparece a defendê-los, e foi assim que o caso do aborto chegou novamente à mais alta instância do poder judicial norte-americano.

E se efetivamente o Tribunal anular a decisão ‘Roe v. Wade’, que protege como constitucional o direito das mulheres ao aborto, os Estados Unidos voltarão à situação que existia antes de 1973, quando cada estado era livre de proibir ou autorizar a realização de abortos.

No caso de o direito ao aborto realmente ser revogado, Luís Menezes Vale afirma que há algumas opções que o Governo dos Estados Unidos pode adotar para tentar contornar a situação no imediato, como a declaração de emergência de saúde pública.

“Uma das hipóteses que é interessante é a possibilidade de se declarar uma emergência de saúde pública, porque as dificuldades de acesso podem justificar. Isso implicaria a possibilidade de prestar cuidados de saúde, no caso de apoio à interrupção da gravidez às mulheres que deles precisassem. Isso ajudaria a ultrapassar as limitações dos estados, porque a lei de emergência, sendo uma lei federal, neste caso e na sua excecionalidade, se sobrepõe”, advogou.

Nesse cenário, poderiam ser praticadas interrupções da gravidez em espaços federais que existissem dentro dos estados, bastando haver, por exemplo, uma clínica móvel ou um edifício pertencente à Federação para esse fim, uma vez que a propriedade da Federação está, em muitos casos, eximida das leis dos estados federados.

Porém, para o docente, a maneira mais simples seria facilitar o acesso a pílulas para a interrupção da gravidez.

“É uma medida com um impacto muito circunscrito, mas ao mesmo tempo é a de execução mais fácil num determinado período. Portanto, através de um programa de disponibilização desses medicamentos, podia-se sacudir no imediato esta situação, mas são sempre soluções imperfeitas.

“Além do impacto que esta decisão do Supremo possa vir a ter no futuro, não há dúvida nenhuma que isto, logo no dia a seguir, gerará um problema muito grande no país, porque, de facto, isto vai permitir que algumas legislações dos estados, algumas muito assustadoras, entrem em vigor e que criem uma situação muito complicada para as mulheres, principalmente para as mais pobres, em certas regiões”, concluiu.

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