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Blockchain e preços de transferência: realidade ou imaginação?

O ‘Blockchain’ afigura-se como uma ferramenta disruptiva no plano das obrigações de documentação em matéria de preços e transferência e não só. Mas o que à partida parece ser uma panaceia para as obrigações declarativas suscita problemas de vária ordem. Será que as empresas estarão preparadas para se sujeitarem a um escrutínio, em tempo real, das suas operações?
26 Abril 2019, 00h00

As obrigações declarativas em matéria fiscal que impendem sobre as empresas são candidatas óbvias para a chamada digitalização, que não se limita à desmaterialização. O objetivo será ter a informação nos sistemas de suporte à gestão tratada, organizada e armazenada de tal forma que, carregando numa única tecla, teremos o produto final que desejamos com o mínimo de intervenção humana.

Para algumas empresas a obrigação de documentação de preços de transferência estará no topo da lista das áreas de trabalho fiscal que gostariam de eliminar ou transformar em algo fácil e barato de manejar e disponibilizar à Autoridade Tributária (AT). Com a implementação de metodologias de documentação centralizada (seguindo a ação 13 do programa BEPS), os grupos multinacionais já conseguiram significativas poupanças de tempo e recursos. Por resolver estão questões importantes como seja o enfoque centralizador de tais modelos de documentação que, por vezes, não defendem adequadamente a necessidade de patamares razoáveis de rentabilidade das filiais e sucursais de grupos multinacionais e, também, a compatibilização de tais modelos com as exigências das legislações locais. Em paralelo, a AT passará a receber toda a contabilidade dos contribuintes, através do SAF-T da contabilidade e já tem acesso, através dos mecanismos de troca de informação transfronteiriços, a um manancial de dados que lhe permite realizar inspeções muito mais direcionadas e eficazes do que no passado.

E como é que o Blockchain pode simplificar, ainda mais, a elaboração dos processos de documentação de preços de transferência sem que se gerem inconsistências com a informação que a AT já tem em seu poder? Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que se trata de uma grande base de dados descentralizada, permanentemente atualizada e reconciliada. O facto de não poder ser controlada por uma só entidade e funcionar numa lógica em que todos os intervenientes, à partida, atuam numa base de desconfiança relativamente aos demais, confere-lhe um grau de certeza significativamente alto no que respeita à inviolabilidade dos dados que são colocados na rede e depois validados por vários intervenientes.

Ora, tendo presente as caraterísticas acima mencionadas, o Blockchain afigura-se como uma ferramenta disruptiva no plano das obrigações de documentação em matéria de preços de transferência, e não só. Pensemos no modelo tradicional de resposta às obrigações declarativas: (i) solicitação de dados/informação à contabilidade; (ii) análise, preparação e realização de correções relativas aos dados/informação recebida; (iii) cálculo de ajustamentos necessários; (iv) preparação das declarações/documentação; (v) submissão das declarações/documentação à AT; (vi) período de inspeção por parte da AT, atendendo às regras de caducidade do direito à liquidação.

Com a migração/compatibilização dos atuais sistemas de apoio à gestão para o Blockchain, o modelo simplifica-se. A informação é extraída diretamente dos sistemas da empresa (SAP, por exemplo), disponibilizada via Blockchain em tempo real à AT e, opcionalmente, aos auditores estatutários. A AT realizará de imediato as suas auditorias (“e-audit”) que gerarão pedidos de esclarecimento ou, eventualmente, liquidações adicionais. Ou seja, enquanto no modelo tradicional nos confrontamos, em geral, com um ciclo de reporte de n+4 anos, no modelo Blockchain passaremos tipicamente para um ciclo n+90 dias.

Mas o que à partida parece uma panaceia para as obrigações declarativas suscita problemas de vária ordem. Será que as empresas estão preparadas para se sujeitarem a um escrutínio, em tempo real, das suas operações? E quererão ter que prestar esclarecimentos imediatos à AT se as margens de um dado produto, por qualquer razão, tiverem de ser alteradas? Que nível de informação sobre a atividade da empresa pode/deve ser passado em tempo real para terceiros? Como se compatibiliza esta situação com a necessária coordenação, a todos os níveis, com as restantes empresas que integram um grupo?

São muitas as questões que ficam por responder, mas é certo que, via SAF-T da contabilidade, Blockchain, ou qualquer outra realidade tecnológica com que em breve nos confrontaremos, as empresas terão que refletir sobre estas matérias, sob pena de serem confrontadas, posteriormente, com factos consumados que lhes poderão causar muitas dificuldades.

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