Em Portugal, apesar do constante queixume em que nos tornámos especialistas, gostamos de nos reconfortar com a sensação de que vivemos num país seguro. Ou melhor, com a ilusão de que Portugal é um país seguro.

Isto porque, apesar de o mais próximo que temos de terrorismo serem duas dúzias de acéfalos a invadirem um recinto desportivo e de os arrastões a la Copacabana serem tão raros que os media até aproveitam para os exagerar, vivemos num país com um problema grave e evidente de violência e insegurança, sob uma forma particularmente cruel e complexa que torna o meio familiar da vítima no palco destas agressões, ao invés de ser um porto seguro onde buscar abrigo.

Os números, apesar de não pintarem a imagem toda, são expressivos o suficiente: em menos de mês e meio morreram já nove mulheres vítimas de violência doméstica; o ano passado, o número de vítimas mortais subiu para 24, invertendo uma tendência decrescente que se verificava há quatro anos; desde 1992 a 2016, o relatório da APAV menciona mais de 260 mil crimes de violência doméstica, sendo que em 1997-98 estes nem foram contabilizados, dada uma moldura jurídica diferente.

Num país de dez milhões de pessoas, tido como calmo, católico e de brandos costumes é capaz de ser exagerado. E sabemos que nem serão números realmente precisos, mas antes uma fracção das ofensas deste tipo cometidas.

Analisando o relatório da APAV, é fácil verificar que a introdução da linha de apoio à vítima, em 1999, resultou num aumento considerável dos casos reportados. Tal facto aponta para a facilidade de denúncia destas situações, que me parece um aspecto-chave a considerar num sistema que se quer mais eficaz a proteger indivíduos subjugados por um agressor com quem partilham o quarto.

Mas, se nessa altura o assunto seria ainda tabu e parte do problema seria a falta de à-vontade das vítimas em acusar o seu agressor, hoje em dia o número de casos denunciados aponta para um problema diferente, que a OMS fez questão de salientar: o número de condenações por crimes desta natureza é absurdamente baixo.

Dos 27.011 casos comunicados às forças de segurança em 2016, apenas 11.626 resultaram num inquérito efectivo, apesar da atribuição do estatuto de vítima a 20.947 – existem vítimas, mas aparentemente não existem agressores, o que é depois confirmado pelas raquíticas 730 detenções verificadas nesse ano; desses 11.626 inquéritos, apenas 1.849 prosseguiram para uma acusação efectiva, uma percentagem (16%) semelhante às verificadas nos anos anteriores, e daqui resultaram 1.038 condenações, um número que, apesar de consideravelmente mais alto do que no período de 2012-2015, se torna irrelevante a partir do momento em que 90% destas penas são suspensas.

Fantástico. Em Portugal, é mais grave ser-se apanhado com 10g de haxixe do que a espancar a mãe dos nossos filhos.

Entretanto, as notícias de violência doméstica e femicídios são já ruído branco no meio dos noticiários, excepto quando envoltas em pormenores tão macabros que se tornam impossíveis de ignorar, ou quando o suporte de vídeo as torna apetitosas para abrir jornais. Mas, quando um juiz é repetidamente apanhado em acórdãos que já em 1800 seriam retrógrados e, ainda assim, o seu castigo é uma advertência, acho que muita coisa está explicada.

Porque a violência doméstica não é fruto de meia dúzia de malucos que não se sabem comportar – a violência doméstica é o resultado de uma sociedade profundamente machista, em que as mulheres são ainda vistas como propriedade do macho da relação, com deveres domésticos remanescentes do Estado Novo; é o produto de um país em que é ainda frequente ouvir-se, na capital e cidade supostamente mais cosmopolita e progressista, comentários sobre a saia de uma qualquer rapariga, acompanhados do inevitável “depois admiram-se!…”.

Porque é uma consequência da inacção de cobardes que, escondendo-se atrás de sabedorias populares estúpidas, não metem a colher numa relação que, claramente, está de cortar à faca; e é perpetuada por jovens que, quiçá vivendo numa realidade semelhante desde que se lembram, se sujeitam a violência ainda no namoro, tomando como normal uma situação que de normal não tem nada.

Num assunto que parece reunir tanto consenso partidário, urge tomar medidas efectivas que, mais do que proteger as vítimas, castiguem severamente os agressores. Isto porque, por muito desligado que um homem violento esteja da realidade, uma pena de 20 anos é algo preemptivo, mas sobretudo porque, em muitos casos, a mulher não é a única vítima num caso de violência doméstica. E, no caso das crianças, frequentemente as vítimas de hoje sê-lo-ão amanhã ou, pior, passam para o lado dos agressores.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.