Estando distante fisicamente, acabo por estar impossibilitado de te dar um abraço fraterno de amizade. Resta-me, pois, este singelo gesto, uma carta aberta nesta hora do teu julgamento. Porque, como escreve Luhana de Carvalho, “a amizade fundamenta-(se), em princípio, numa confiança para além da lei”. Acrescento que a amizade não está só despida de uma legalidade, mas também está fora de uma jurisdição ética externa. Sendo vivida dentro de uma circunstância interna de cumplicidade, com regras próprias.

Trazer a público a amizade talvez seja um acto de traição, porque a amizade tem um lado confessional. No entanto, o contexto impõe uma declaração pública devido ao julgamento que agora enfrentas.

Estás a ser julgado no mesmo tribunal que julgou, em 2015, o agente policial que assassinou Edson Sanches (Kuku), de 14 anos, do Bairro da Laje, na Amadora. O Kuku foi abatido no dia 5 de Janeiro de 2009, com um tiro na cabeça à queima-roupa por um agente da PSP, na sequência de uma perseguição automóvel. Quando o polícia acabou por ser ilibado do seu acto ficou um silêncio na sala que encobria o sofrimento de uma mãe. Nós não tínhamos as palavras certas para aquecer o coração da mãe do Kuku.

A decisão deste tribunal transformou-se em mais um factor de motivação para alimentar a tua causa anti-racista e de luta contra a violência policial. Sem temer riscos e o impacto directo que esta luta teria na tua vida. Essa tua coragem causou-me sempre um misto de sentimentos. De inveja, por não ser capaz de tal ousadia, e, também, de perplexidade, por considerar que era algo muito arriscado até para um sujeito imprudente.

A tua devoção por um mundo mais justo e a perseguição por valores mais humanos são, para ti, um combustível de sobrevivência. Tu avanças sem temer qualquer censura social ou política. Essa coragem causa-me admiração. Admiração pela tua capacidade de analisar o sentido da vida, através de causas que habitam as nossas almas. As nossas causas. Com a cabeça levantada e uma voz que inspira segurança, nunca deixaste de dizer o que achas ser certo. Por convicção e por respeito à integridade dos teus princípios éticos.

Estes teus actos levaram-te ao julgamento que agora decorre, contudo, nenhuma sentença alterará o pulsar da tua paixão pela justiça e não servirá para gerar qualquer mudança sobre o teu engajamento político. Servirá, apenas, para justificar que estás no caminho certo e do lado certo da História. Nenhuma decisão de qualquer instância judicial tem o poder de alterar uma causa que é uma causa de vida e de sobrevivência para alguns. O racismo consagrou-se, ainda hoje, num instrumento político para legitimar a actuação de certos grupos, sobretudo numa era das redes sociais, onde tais actos são praticados em grupos fechados.

Ao longo destes anos, tens sido visado em diversos ataques de grupos extremistas, que dirigem ameaças sobre a tua segurança e a segurança dos teus. Porém, a tua voz tornou-se tão incómoda que foste rapidamente apelidado de radical e de instigador de uma divisão racial em Portugal. O teu crime foi apenas um: expor o estado do racismo em Portugal e não aceitar abusos por parte das autoridades policiais.

Independentemente do desfecho deste julgamento, que sei que nunca irá alterar as tuas convicções, quero agradecer toda a tua dedicação às nossas causas. Não desistas. Quero continuar a invejar a tua coragem, meu kamba.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.