Como lembrou Paulo Portas, Mário Soares depois de deixar a presidência permitiu-se continuar a dizer publicamente, em toda a liberdade, aquilo que pensava e preocupava sobre o desempenho do governo de Cavaco Silva. Barack Obama vestiu a t-shirt do Partido Democrata e criticou e escarneceu Trump repetidas vezes na campanha eleitoral de Joe Biden. Uma das suas críticas foi que Trump arreigou para si o mérito de uma economia saudável, mas que na verdade fora herdada do seu antecessor, o que faz lembrar idêntica situação quanto à herança de Passos Coelho a António Costa.

Cavaco Silva pertence a essa tradição presidencial de manter a liberdade de continuar a participar no espaço público depois de cessar funções.

O discurso de Cavaco Silva, antigo primeiro-ministro e Presidente da República que eu ajudei a eleger, foi uma pedra no pântano nacional e ficará na história política portuguesa. A sua eficácia deveu-se ao conteúdo, ao alvo bem definido, ao momento, e também à utilização de técnicas de retórica como a repetição, a pergunta retórica, a anáfora entre outras. Muitos comentários e críticas ao discurso detiveram-se pouco ou nada sobre a substância, sobre as ideias que expressou e qual o seu enquadramento político-filosófico. Muitas críticas, de facto, são ataques pessoais e espúrias.

O momento foi o encontro dos autarcas sociais-democratas, uma audiência convivial, uma ocasião propícia. Cavaco revelou que não suporta mais a degradação política, económica, financeira, cultural e social de Portugal, a falta de crescimento económico, que deveria ser de 4 a 5 por cento ao ano para alcançarmos a média europeia, a despromoção internacional do país e o que esta mistura tóxica representa de futuro sombrio, sem perspetivas, para filhos e netos.

Foram-lhe atribuídos propósitos supostamente ínvios, como o de apoiar a liderança de Luís Montenegro ou de “vestir a t-shirt do PSD”, como se em democracia isso fosse proibido ou constituísse crime de opinião e de ação a quem quer que seja. São críticas a resvalar para o autoritário que refletem a preocupação do PS de que esse legítimo patrocínio, a que nos EUA se chama endorsement, possa contribuir decisivamente para a vitória do PSD em próximas eleições.

Os ataques à liberdade de expressão de Cavaco Silva fizeram-me recordar a mordaça que o regime de Salazar impôs aos portugueses e que Mário Soares denunciou no seu livro “Le Portugal bailloné” (1972) (“Portugal Amordaçado”). Os arremessos revelam que o discurso tocou na corda sensível de um governo em “panne”, como provavelmente diria Mário Soares, que executa mal ou não executa, de ministros sem ética, sem moral, e alguns também sem madureza, e que está como um zombie a conduzir Portugal para a “venezuelização”. Os adultos deste país, com um mínimo de consciência e não contaminados pela propaganda socialista, sabem que se a governação a prosseguir como nos últimos oito anos rapidamente fará dos portugueses os mais pobres da Europa.

Foi o discurso de um social-democrata, como Cavaco fez questão de se reafirmar. Destaco as duas ideias principais. A primeira foi a propugnação da social-democracia como pedra basilar da sua visão política, que inclui o liberalismo embora sem que este tenha sido referido expressamente. A segunda ideia abordou o futuro, as crianças, os jovens: a pobreza que os espera é uma vergonha sem remissão.

Como fez reparar Rui Rocha, leader da Iniciativa Liberal (IL), o diagnóstico e perspetivas sombrias de Portugal que Cavaco fez no seu discurso vêm sendo feitas pela IL nos últimos anos. Embora Cavaco tenha apelado a que o PSD não faça alianças pré-eleitorais, a alternativa social-democrata liberal que eu tenho sugerido, mesmo sem quaisquer alianças que de qualquer modo são recusadas pela IL, é um conceito que está a entrar no discurso político. O próprio Luís Montenegro e também Marques Mendes utilizaram a palavra alternativa para designar a nova política de crescimento e bem-estar que o PSD quer representar e executar.

A meu ver, os dados foram lançados por Cavaco. As hostes do PSD têm de se apressar e construir uma sólida comunicação baseada na ideia de que o PSD tem as pessoas, o conhecimento, a experiência e o projeto para arrancar o país do marasmo e persuadir aqueles oito ou nove por cento de eleitores que, como Cavaco sublinhou, lhe darão a vitória nas próximas eleições.

Compreendo Cavaco. Não foi para isto que foi feito o 25 de abril, nem a vitória a 25 de novembro, nem o esforço dos políticos, das mulheres e homens que se colocaram ao serviço de Portugal, ao longo das primeiras décadas de democracia, o seu saber, esforço, sacrifício e vontade para construir um Portugal democrático, social e liberal, com um nível de desenvolvimento e bem-estar europeus.

Para muitos será vaga a memória dos anos de luta pela liberdade e pela democracia, os anos que transformaram Portugal numa democracia liberal. O discurso de Cavaco recordou o tempo, no século passado, em que Portugal foi uma social-democracia, até ao momento em que o PS se aliou aos comunistas do PCP e do Bloco de Esquerda, aqueles mesmo que Mário Soares combatera indefetivelmente, como Cavaco fez reparar.

Repare-se que os portugueses que nasceram em 2000, que agora têm 23 anos e a acabar os estudos ou já a trabalhar, tudo o que conhecem é a governação socialista. Tinham apenas 11-15 anos no intervalo assinalado pelo governo de Passos Coelho. É-lhes desconhecida ou difusa a ideia e prática de governação seguindo rigorosos princípios éticos e morais próprios da democracia liberal, confiável, com transparência e assunção de responsabilidades, aberta à crítica e à cooperação construtiva, com claro objetivo estratégico de crescimento, inovação, apostado na iniciativa individual, em empregos bem-pagos em atividades de ponta com elevado valor acrescentado, aplicando uma política consensualizada em negociação e compreendida por todos.

Até mesmo as crianças se perguntam sobre a “porcaria” do Governo. Já chegámos a esse ponto. Desde sempre só ouvem falar em desgraças e desgraçados, em pobres, em bancarrota, em dívida do Estado, em corrupção, no SNS, educação e justiça em degradação, em impostos altos, em “apoios do governo” (feitos com o dinheiro dos contribuintes), em esquemas de fuga ao fisco, em mentira, em inquéritos, em um futuro como funcionários do Estado, etc. Quais serão os valores dos portugueses que irão governar o país daqui a poucos anos?