Em Portugal, só em Lisboa, pelo menos cerca de 400 pessoas dormem na rua. Por razões e circunstâncias distintas, que vieram a ser agravadas em resultado da crise sanitária e socioeconómica, (sobre)vivem diariamente sujeitas a condições por nós impensáveis, que vão bem além da exposição ao frio ou ao calor ou ter algo com que se alimentar.

Em causa está também o acesso a direitos consagrados na Constituição da República, alguns dos quais só com um Cartão de Cidadão podemos aceder. Num tema tão complexo, facilmente caímos no erro de pensar que o direito à emissão de um cartão de cidadão é um tema menor. Mas não é!

Segundo dados da OCDE, divulgados no estudo “Melhores dados e políticas para combater a falta de casa”, existiam à data em Portugal 1.443 pessoas sem teto. Várias ONG, associações e equipas que atuam diariamente no terreno, têm relatado que há mais pessoas na rua e mais pedidos de ajuda alimentar, sobretudo como consequência do atual contexto sanitário.

Por outro lado, são várias as dificuldades que ao longo do tempo os sucessivos governos, nacionais e locais, têm tido no desenho e na implementação de medidas de resposta direcionadas à população em situação de sem-abrigo, em particular no acesso à habitação e à sua integração social.

Para um país que, entretanto, conta entre os seus inúmeros planos com uma Estratégia Nacional para as Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSA), poderá parecer surreal que, à data deste artigo, por razões que só podem ser meramente burocráticas, a uma pessoa que esteja em situação de sem-abrigo não seja permitido, à luz da lei ainda vigente, a possibilidade de ser portadora de uma cidadania plena, porquanto se lhes encontra vedado o acesso à obtenção de documentos que exigem a indicação de uma residência, como é o caso do Cartão de Cidadão.

Com efeito, embora seja um direito e um dever de todos os cidadãos serem portadores de um cartão de identificação, este não é emitido a quem não tem uma morada, indo contra as indicações estabelecidas nas duas estratégias nacionais de integração (ENIPSA 2009-2015 e 2017-2023).

Em ambos os períodos da sua vigência, elenca esta estratégia nacional como um dos seus objetivos a criação de condições para garantir a promoção da autonomia das pessoas em situação de sem-abrigo com vista ao exercício de direitos e deveres de cidadania, o que inculca uma responsabilidade a todas as entidades para salvaguarda do acesso aos serviços.

O Parlamento deu na passada semana um passo significativo para que esse direito passe a estar consagrado para quem não tenha uma casa para dar como morada, ao aprovar a proposta do PAN que vem dar resposta a uma reivindicação antiga de quem está no terreno.

Acaba-se, finalmente, com esta restrição à dignidade e à cidadania a quem já se encontra numa situação de vulnerabilidade e exclusão, e potencia-se uma efetiva política de inclusão e de combate às injustiças sociais, para que todas as pessoas tenham direito a uma cidadania plena.