Era esperado que esta pandemia revelasse (des)humanidades. Apontamos, como exemplo, o surto, também viral, das cobranças extrajudiciais exercidas de forma repressiva – tema reintroduzido na agenda política pela apresentação de um Projeto de Lei que, contudo, não acautela os direitos dos seus destinatários últimos: os devedores singulares.

Apesar das diversas orientações emitidas pelas entidades de supervisão proibirem contactos abusivos com os devedores ou seus familiares por parte do credor ou seu representante (exercidas através de empresas), consideramos que a repressão destas condutas pela via exclusivamente contraordenacional é manifestamente insatisfatória, por não proteger os devedores.

Este Projeto de diploma arroga-se permitir a estas empresas – cuja legalidade ainda se discute – uma forma de atuação mais invasiva do que aquela que aos próprios solicitadores e advogados é permitida, profissões que, ao contrário daquelas se regem por códigos disciplinares e deontológicos próprios.

É que o Projeto de Lei não só permite que o credor contacte terceiros para obtenção de informações – sem a autorização prévia destes –, bem como, permite a interpelação do devedor na sua residência, como se este contacto físico com o devedor, na intimidade do seu lar, porventura perante seus familiares e vizinhos não se traduzisse, num método coativo de cobrança derivado de abordagem idónea a causar não só vergonha e ofensa à sua honra, mas também medo e perturbação no devedor e seus próximos, constituindo um meio objetivamente orientado a constranger aquele à entrega do valor reclamado.

Acresce que o diploma proposto não prevê, por exemplo – para boa defesa do devedor -, o registo áudio das interpelações telefónicas, o que poderia servir para reprimir eventuais contactos coativos feitos diretamente entre cobrador e devedor, seus familiares ou terceiros.

Pergunta-se: não constituirá em si esta permissão legal de contacto junto da residência do devedor, um elemento de pressão psicológica, com vista a coartar a sua liberdade de atuação, enquadrando-se, assim, no crime de coação?

É que tempos difíceis como os que se vivem, não se compadecem com a proteção manca dos cidadãos perante entidades em posição de força na relação obrigacional. Urge assim, em respeito do que tem sido a evolução jurisprudencial relativa à figura do cobrador do fraque (condenados pelos crimes de injúrias, coação, perseguição e difamação), a criação de uma norma que criminalize comportamentos abusivos de cobranças extrajudiciais exercidas pelos próprios credores ou seus representantes, em respeito pelos direitos de personalidade dos cidadãos, que apesar de devedores não os perderam – como a honra e dignidade da pessoa humana e a sua liberdade de atuação.

Como dita a jurisprudência, esta forma peculiar eleita pelos credores para cobrança dos seus créditos é ameaçadora dos pilares do Estado de Direito Democrático, que tem no primado da lei e no recurso aos tribunais a forma certa de dirimir litígios, não podendo os particulares substituírem-se ao poder coativo que só os tribunais detêm.