Nos dias 6 e 8 deste mês, saíram no jornal “Público” dois documentos interessantes: “Há política industrial em Portugal?” do economista/Professor do ISCTE, Ricardo Paes Mamede, e a entrevista do ministro da Economia, António Costa Silva.

Estes dois documentos, bem diferentes em dimensão, conteúdo e visão estratégica, são interessantes porque podem ser lidos um pouco no sentido de captar elementos de reflexão para o tema crucial da economia portuguesa: Por que se gasta tanto dinheiro no país, há tanto tempo, sobretudo fundos comunitários, e a economia não arranca, não se consolida dinamicamente, não muda de matriz?.

Aproximo-me da opinião analítica de Ricardo Paes Mamede, na sua visão global de que não há uma política industrial em Portugal, tão necessária à mudança de perfil de especialização da economia, o que explica, em grande parte, a dificuldade de arranque do País para a mudança de matriz.

Concordo que não é com uma longa lista de medidas de política pública, avulsas, descoordenadas e, tantas vezes prejudicadas na sua eficácia por descontinuidades, que se irão produzir as transformações de fundo, apesar do uso de expressões como clusters, fileiras, apoio a marcas e patentes, internacionalização, protótipos, digitalização, etc., que caem bem no ouvido.

Que tem faltado uma visão estratégica de suporte na qual estejam enunciados desígnios claros e uma articulação e coordenação entre os interesses públicos e privados, penso que estaremos de acordo.

Já não sei se de acordo numa análise mais fina sobre a identificação do que serão actividades “mais promissoras ou sofisticadas”, pois aí há muita relatividade na forma de agarrar esta questão. Só a título de exemplo: será o calçado um sector sofisticado? O têxtil, um sector promissor?

Isto porquê? A política industrial deve, em minha opinião, contemplar várias camadas de medidas de política articuladas numa perspectiva dinâmica (que olhe para os elementos críticos do que existe), no sentido de ir consolidando e melhorando a sua competitividade e uma outra (ou outras) para sectores novos ou sofisticados, tipo fileiras do lítio ou do hidrogénio, que espero venham a ser bem sucedidas, apesar do mau arranque no que toca ao lítio, por uma manifesta falta de diálogo com as populações sobre estes investimentos.

Todas contribuirão para a mudança de matriz, porque evoluindo trazem apports de qualidade, modificando-a.

Já não estou de acordo na forma como está formulada a questão do turismo.

O turismo tem um papel significativo a desempenhar na mudança estrutural da economia. O turismo precisa de evoluir em múltiplas áreas, mas até há segmentos a explorar com forte inter-relação com outras actividades produtivas ou de serviços avançados, como o turismo da descoberta económica, a digitalização, a transição energética e porque não a dessalinização, um domínio atrasado no seu equacionamento em Portugal e que urge ponderar, requerendo uma revisão profunda de posicionamento do Governo no domínio da energia e ambiente. Porque não equacionar a eventualidade de um SMR (reactor) para fornecimento de energia a uma actividade tão consumidora?!

Quanto à entrevista do ministro da Economia, no meu entender, sofre de vários “pecadilhos” e algumas contradições, mas é informativa, embora não responda à questão levantada pela UTAO da (in)capacidade do PRR para grandes transformações.

Centrando-nos na parte do PRR, o ministro não se assume como “pai” do programa, mas como autor de um documento de visão estratégica, preparado em 2020 a pedido do primeiro-ministro, sobre o que fazer até 2030, com vista à transformação estrutural da economia portuguesa.

Como então referi num debate onde esteve presente António Costa Silva (ainda não ministro), continuo a pensar que eram muitos os temas equacionados num documento bem explanado a que faltava um segundo passo para a estratégia, exactamente o estabelecimento de prioridades.

Continuo a defender uma estratégia com uma linha condutora, apontando desígnios claros e uma mecânica de relacionamento eficaz entre os actores intervenientes no processo.

Uma estratégia de desenvolvimento requer focos de incidência precisos e em número reduzido. Esta a pecha do PRR, em que se apontam 53 agendas mobilizadoras, quando o próprio ministro, de algum modo, reconhece que são demais. O ideal seriam dez ou até menos, cinco/seis temas, admite.

Depois tenta justificar (quando confrontado com Espanha, que estabeleceu apenas 11 temas) que as 53 agendas decorreram de propostas das empresas e, por outro lado, já entrou no comboio em andamento. No entanto, com entusiasmo vai avançando, aqui e ali, com algumas imprecisões como quando diz “vamos ter a nossa fábrica de baterias eléctricas para carros, a nossa gigafactory“, a Northvolt sueca, que já tem a fábrica montada e espera o lítio refinado de Portugal (in “Público”, 13Fev2023).

Mostra um grande foco na mobilidade eléctrica, envolvendo a indústria de componentes, e diz estar em negociações com a VW para a fabricação de carros eléctricos em Portugal, para além da Stellantis que vai produzir um carro eléctrico em Viseu. Nada escapa ao senhor ministro. Até o fabrico de aeronaves tem no seu pensamento para localização em Ponte de Sor.

Bem, não vou enumerar todos os projectos de que falou, e muitos são ligados ao hidrogénio sobretudo no grande polígono industrial de Sines. Mas não deixou de referir outros polígonos como Braga-Guimarães-Barcelos- Famalicão e ainda a zona centro Coimbra/Covilhã. Muito boas intenções! A realidade, porém, apresenta-se um pouco mais complexa.

Quanto a condicionantes que emperram os trabalhos de transformação da economia nacional, aponta debilidades na Administração Pública que não contesto.

Simplesmente, nunca se refere à terceirização que tem sido feita, dando ao exterior muitas das funções técnicas, ficando com as funções mais burocráticas. Por exemplo, será que concentrar 60% ou 70% dos recursos humanos do IAPMEI em tarefas de verificação de facturas (como refere) não é colocar os quadros bem qualificados em subrendimento? Não haverá mesmo outra solução? Claro que há. E quem diz IAPMEI pode estender a outros Institutos.

Concordo com a constatação “Portugal tem um problema que é uma espécie de incapacidade de acção colectiva”, estendendo-a justamente não só ao Governo, mas a todo o país.

Não posso concordar, no entanto, com a afirmação do senhor ministro de que só as empresas criam riqueza e nenhuma hostilidade tenho contra elas. Mas então o trabalho do Estado em áreas tão fundamentais como a investigação, a saúde, a educação, etc., não cria riqueza?!

Penso mesmo que nesta visão reduzida e dominante do papel do Estado reside o grande bloqueio do salto da transformação estrutural da economia. Para concluir, uma mudança de mentalidade impõe-se. A questão é como fazê-la sem a renovação de conceitos anquilosantes, como o do papel do Estado.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.